domingo, 23 de dezembro de 2007

Viaje na viagem

Viaje na viagem
Ricardo Freire (Mandarim, 2000)

Se alguém me pergunta que livro eu gostaria de ter escrito, eu respondo logo dois: Histórias de cronópios e de famas ou Reinações de Narizinho. Mentira. Eu queria mesmo era ter escrito Viaje na viagem, o sensacional e infelizmente esgotado primeiro livro de Ricardo Freire. Ex-publicitário ("não é assim uma Brastemp" te diz alguma coisa?), viajante profissional e atual blogueiro, Riq escreveu o guia de todos os guias sem dar nenhuma informação básica pro turista - onde ficar, onde comer, o que ver, etc.

Como indica o bem humorado subtítulo, trata-se, sim, de um livro de auto-ajuda para turistas. Com a experiência de quem já rodou o mundo e esteve até na Cochinchina, Freire orienta os leitores sobre que tipo de viagem combina mais com cada perfil, dá sugestões de itinerários malucos e/ou de sonho, publica um glossário de destinos e ensina como pesquisar tudo pela internet - com a ressalva de que, como o livro é de 1998, as dicas estão quase dez anos atrasadas; mesmo assim, são um excelente ponto de partida. Para acompanhar os posts do blogueiro, acesse viajeaqui.com.br.

O buraco da agulha

O buraco da agulha
Ken Follett (Best Seller, 2007)
A pior coisa que pode acontecer a quem começa a ler um thriller é ficar sabendo sem querer como a história se resolve. E no caso de O buraco da agulha, um suspense editado na louvável coleção BestBolso (livros com preços bem mais baixos, lançada pela Best Seller), o vilão é... a própria editora: a quarta capa do livro entrega não só um importante relacionamento que surge no decorrer da trama como a fundamental perspicácia de um certo personagem. Basta ler pra adivinhar o final.

Não leia, pois, a quarta capa, se quiser acompanhar esse suspense bacaninha. Com falhas na trama e algumas situações muito inverossímeis, O buraco da agulha perde feio dos clássicos do gênero - até para Agatha Christie -, mas consegue prender a atenção do leitor ao contar a história de um espião alemão infiltrado na Inglaterra durante a Segunda Guerra. Para revelar um enorme segredo que os Aliados escondem de seu país, ele não hesita em matar, roubar e mentir.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Se um viajante numa noite de inverno

Se um viajante numa noite de inverno
Italo Calvino (Companhia das Letras, 1999)

Eu nunca li André Breton, Paul Éluard ou Prévert, e não tenho idéia de como seja um texto surrealista "original". Pra mim, o gênero tem este nome: Se um viajante numa noite de inverno. Foi meu primeiro e torturante Calvino, que vai envolvendo Você, Leitor, numa trama absurda e interminável - sim, trata-se de um livro interminado. Ou melhor: de vários, já que nenhuma história continua onde parou no capítulo anterior. Parece complicado? É fascinante.

Você, Leitor, compra o livro Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino, e lê animado o primeiro capítulo. Quando vira a página para continuar a história, porém, encontra um problema de impressão que impede o prosseguimento da leitura. Então Você, Leitor, volta à livraria e troca o exemplar, mas aí percebe que levou para casa uma outra história, também interessante. Só que, no segundo capítulo, a encadernação está truncada. E volta à livraria... e volta à história... e aí aparece a Leitora... e assim vai.

Memórias de Aldenham House

Memórias de Aldenham House
Antonio Callado (Nova Fronteira, 1989)

Em 1989, eu estava no segundo ano da faculdade e uma professora de que não me esqueço, Eliane Robert Moraes (a única que me deixou saudades da Puc), pediu para a classe ler e comentar alguns livros. Eu escolhi Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, minha estréia no Rubem Fonseca, e meu namoradinho da época ficou com Memórias de Aldenham House. Quando, depois do trabalho da faculdade, trocamos os livros, eu não consegui acompanhar a empolgação dele neste Antonio Callado. Lembro de achá-lo cansativo, num tom meio deprimente, e não consigo me recordar de quase nada da trama.

O básico, portanto: nos anos 40, vários latino-americanos encontram-se na Inglaterra ao trabalhar no serviço de rádio da BBC. Dá pra ver que a história não me marcou, a não ser por um e significativo detalhe: um dos personagens trabalha na tradução, para o espanhol, do Finnegan's wake de James Joyce (talvez mais ilegível e intraduzível que seu Ulisses). E traduz, brilhantemente, a "semana do terror" que aparece no livro do irlandês.

"All moanday, tearsday, wailsday, thumpsday, frightday, shatterday till the fear of the Law."

"No más que lunamento, lagrimartes
Mierconieve, juevorror
Inviernes, sabadolor
Hasta el terror de la Ley."

Perfeito.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

A sombra de Allan Poe

A sombra de Allan Poe
Matthew Pearl (Ediouro, 2007)

Gostei tanto do primeiro livro de Matthew Pearl, O clube Dante, que não via a hora de ler esse segundo, que dessa vez envolve um advogado americano num possível mistério sobre a morte do escritor Edgar Allan Poe. As primeiras páginas, chatíssimas. "É só o começo", pensei, "depois engrena". Que nada. Mais de 100 páginas depois - a versão paperback que eu li tinha 430 -, o tédio continuava. Pior: os personagens eram pífios. A começar pelo jovem advogado que vai atrás de saber a verdade sobre a morte de Poe: ora aparece como um perfeito idiota, ora como um idiota só ingênuo.

Sem falar na trama rocambolesca e totalmente sem sentido, forçadíssima, que se arrasta pelas mais de 400 páginas sem empolgar em nenhum momento. Sei lá o que houve, mas Matthew Pearl perdeu completamente a mão nesse seu segundo romance. Eu insisti na esperança de encontrar, lá pela metade - no final, que fosse -, um pouco da emoção literária que ele conseguiu em O clube Dante. Que nada. Melhor ler Edgar Allan Poe.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

O diário de Anne Frank

O diário de Anne Frank
Anne Frank (Record, 2003)

Não sei o que é melhor (ou bem pior): ler o livro e depois visitar a casa de Anne Frank, em Amsterdã, ou ler o livro e nunca pisar lá. É que passar pelos cubículos que a família de Anne dividia, num sótão minúsculo, encontrar a água-furtada que ela tanto citou, ver a estante estreita que escondia a fenda na parede e levava ao "apartamento", tudo isso ajuda a compreender melhor a vida da menina naquele desgraçado tempo nazista. Ao mesmo tempo, conhecer a casa dá uma angústia quase palpável, ainda que não tenha restado nenhum móvel pra contar história - talvez o mais impressionante seja exatamente isso, o vazio dando conta do desespero.

O diário de Anne Frank é leitura obrigatória e deprimente. Fugidos da sanha nazista contra os judeus, Anne, seus pais e a irmã acabam escondidos no Anexo Secreto de uma casa em Amsterdã, dividindo o espaço com mais quatro pessoas. Durante os mais de dois anos que passaram ali, o diário torna-se seu único companheiro. É particularmente aflitiva a descrição que ela faz da maneira que usavam para ir ao banheiro - nenhum barulho poderia ser ouvido na casa, abaixo, onde funcionava um escritório. A torcida é grande durante todo o livro para que a garota sobreviva à guerra, mas o final é bem triste: Anne morreu no campo de concentração de Bergen-Belsen, em 1945, depois do esconderijo ter sido descoberto.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

A fantástica fábrica de chocolate

A fantástica fábrica de chocolate
Roald Dahl (Martins Fontes, 2000)

Mais um da série leia o livro, veja o filme e ouça o disco - eu fiz as três coisas, e devo ter assistido à primeira versão de A fantástica fábrica de chocolate na telinha umas quinze vezes. É, sem brincadeira. A segunda versão assisti só uma vez, e não gostei muito porque a) o Johnny Depp é muito bacana, mas sr. Wonka mesmo é o Gene Wilder; b) não tem musiquinha de Oompa Loompa; c) não dá medinho quando Charlie e o avô tomam uma gororoba proibida e começam a levitar em direção a uma hélice bem afiada.

Em compensação, o segundo filme é mais fiel ao livro em alguns detalhes - ao contar a história do pai do sr. Wonka, um dentista bizarro, e ao fazer Veruca Salt dar seu piti em meio a esquilos que separam nozes podres das nozes boas (no filme original, Veruca estressava com uns gansos que botavam ovos de ouro). Ok, este é um blog de afetividades literárias, mas entre ler o livro, ver o filme e ouvir o disco, eu fico com "ver o filme", a versão de 1971. E ainda dá pra cantar junto com os Oompa Loompa quando o Augustus Gloop cai no rio de chocolate:

Oompa oompa loompa dee doo
I've got a perfect puzzle for you
Oompa oompa loompa doo dee
If you are wise you'll listen to me

What do you get when you guzzle down sweets?
Eating as much as an elephant eats
What are you at getting terrible fat?
What do you think will come of that?
I don't like the look of it

Oompa oompa loompa dee doo...

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

O chalaça

O chalaça
José Roberto Torero (Objetiva, 1999)

De um tempo pra cá isso tornou-se comum - Jô Soares deitou e rolou e até Ruy Castro embarcou no gênero -, mas O chalaça foi meio que pioneiro (saiu em 1994) entre os romances que misturam fatos e personagens reais a situações imaginárias. Neste caso, Dom Pedro I, a Marquesa de Santos e gente como Francisco Gomes da Silva, o chalaça do título, uma figura que existiu de verdade como conselheiro do Império e serviu como espécie de faz-tudo de Dom Pedro. Diz-se que cabia a ele, por exemplo, intermediar os encontros amorosos do imperador com a mulherada.

José Roberto Torero acertou a mão ao escrever um livro narrado em primeira pessoa pelo próprio chalaça, que numa espécie de diário conta histórias dos bastidores do poder, fala da vida amorosa do imperador e ainda encontra tempo para hilariantes tiradas filosóficas - como a teoria de que o fluxo do sangue durante o sexo influencia o comportamento masculino. Divertidíssimo. E, sabe-se lá se por alguma qualidade também histórica, entrou até para a lista de leituras obrigatórias de alguns vestibulares.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Minhas histórias dos outros

Minhas histórias dos outros
Zuenir Ventura (Planeta do Brasil, 2005)

É o tipo de livro que você termina e fica com vontade de mandar um email pro autor pedindo "conta mais?" Eu já gostava do Zuenir Ventura desde 1968 - O ano que não terminou, e virei fã de vez ao ler as crônicas que ele escrevia para o nomínimo.com, que os céus o guardem. O título deste livro, aliás, se não me engano saiu de uma enquete informal que o próprio Zuenir promoveu e contou em uma de suas crônicas no site; trata-se de uma paródia ao Minhas memórias dos outros, do hoje desconhecido Rodrigo Octávio.

É, também, um caso incomum de livro de entrega direitinho o que vende no título: pra não escrever suas memórias comme il faut, Zuenir Ventura resolve contar passagens importantes - ou divertidíssimas - de sua vida com os outros, os amigos, a família, os colegas de profissão. Um dos textos mais surpreendentes dá conta da morte de Pedro Nava e da decisão generalizada da imprensa em esconder os detalhes do suicídio e a homossexualidade do escritor em seu obituário. Outro emociona ao tratar a história até então desconhecida de como Zuenir e sua família abrigaram um garoto que foi testemunha no assassinato de Chico Mendes. Zuenir, conta mais?

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

O gênio do crime

O gênio do crime
João Carlos Marinho (Global Editora, 2005)

É o maior clássico da minha infância/adolescência, e um livro que eu não me canso de ler até hoje: conserva a graça e humor mesmo para quem já o leu 500 vezes, decorou a história de trás pra frente e sabe o que acontece no final. Imagino que seja ainda mais bacana pra quem conhece direito São Paulo, quase uma personagem da história. As improváveis aventuras do Gordo, Pituca e Edmundo não seriam as mesmas não fosse o método de seguir ao contrário desenvolvido pelo Gordo e colocado em prática no centro da cidade, ou o acampamento dos três garotos às margens do rio Tietê - vai ver que isso ainda era possível nos anos 70, quando o livro foi escrito; aliás, a história inteira só existe porque se passa num tempo tão distante da nossa realidade que mais parece ficção, um tempo em que as crianças ainda andavam sozinhas por aí e a liberdade era inversamente proporcional à violência.

Quando uma quadrilha de pilantras começa a falsificar as figurinhas de um álbum de futebol, seu Tomé pede a ajuda de Edmundo, Pituca e Bolacha, o Gordo, para encontrar os bandidos. E os três topam a parada, mesmo que para isso seja preciso mentir, arriscar a pele e até acampar às margens do Tietê. Impossível dizer qual é a melhor parte do livro: tudo é tão bem entrosadinho que uma trama não tem graça sem a outra e um resumo simplezinho acaba ficando chocho. O bom é ler e dar risada com a inteligência do Gordo, com o sotaque impagável de Mr. John Smith Peter Tony, o "detetive invicto", com os planos mirabolantes do anão. Contar mais nem é tirar a graça da história: é querer competir inutilmente com ela.

Atualização - Muita gente chega ao blog procurando por "resumo de O gênio do crime" no Google. Ok, todo mundo tem o direito de ser preguiçoso. Se você é um deles, porém, que pena: não sabe o que está perdendo por não ler esse livro.

domingo, 2 de dezembro de 2007

O nome da rosa

O nome da rosa
Umberto Eco (Nova Fronteira, 1983)

O próprio Umberto Eco, em seu Pós-escrito a O nome da rosa, disse que as primeiras 100 páginas do romance são uma espécie de teste de paciência. Só quem consegue atravessá-las merece ler o livro todo. Faltou avisar que muito mais páginas podem ser chatas, e que quem chega a O nome da rosa querendo uma história policial, como o filme dá a entender que seja, vai cair do cavalo. Sim, a identidade do monge que começa a matar seus colegas permanece desconhecida até quase o final da trama. Mas o verdadeiro mote do livro são as questões filosóficas e teológicas do protagonista, Guilherme de Baskerville (e depois do filme não dá mais pra imaginá-lo com outro rosto que não o do Sean Connery).

Li O nome da rosa duas vezes, no final da adolescência. Na primeira, não entendi nada. Na segunda, até fiz o desenho do labirinto da biblioteca para melhor acompanhar a história (não sei se foi útil). Continuo, até hoje, ignorante a respeito das questões filosóficas e teológicas de Guilherme de Baskerville. Lembro da aflição que senti ao ler sobre o fogo na biblioteca, a tristeza por imaginar a perda de tantas obras. Lembro do assassino e de seu motivo torpe para destruir os livros. Gosto da idéia de um narrador que ouviu a história de um terceiro, que a leu no manuscrito de outro alguém. Mas o que eu guardo do livro, até hoje, é uma frase dita por Guilherme de Baskerville quando seu assistente, Adso de Melk, pergunta o que lhe incomoda mais na pureza. "A pressa", responde Guilherme.

O misterioso sr. Quin

O misterioso sr. Quin
Agatha Christie (L&PM Editores, 2006)

Até hoje, de tempos em tempos eu releio este livro, tentando entender que tipo de estranho fascínio ele exerce sobre mim. Não é excepcionalmente bem-escrito (melhor dizendo, bem-traduzido, já que nunca o li no original), não tem uma trama surpreendente (ao contrário, é composto de várias pequenas histórias, todas superficiais) nem personagens cativantes (o próprio sr. Quin do título, apesar de fundamental para o desfecho de cada problema, não é explorado da maneira como merecia). Mas sempre o pego com prazer, e o leio não como da primeira vez, procurando ficar mais atenta para quem sabe descobrir o que tanto me atrai.

Escrevendo, agora, sobre o livro, me ocorreu a resposta. O misterioso sr. Quin reúne uma coleção de personagens perturbados como poucas vezes já se viu - e isso é fascinante. Pelo menos dois ele afasta do suicídio. Outros tantos ele livra de traumas do passado. E ainda que não haja em ninguém nenhuma profundidade psicológica (se é que Agatha Christie já conseguiu isso, foi apenas nas histórias de Miss Marple, e olhe lá), suas perturbações existenciais, físicas e mentais formam um conjunto característico e bastante revelador da essência humana.

Uma breve história de quase tudo

Uma breve história de quase tudo
Bill Bryson (Companhia das Letras, 2005)

Gente que escreve sobre ciência de maneira compreensível merece uma mesura. Não é fácil tratar de geologia, física, química e biologia - pra ficar apenas nas matérias que estudamos na escola - de um jeito atraente e interessante. Na maioria das vezes, ou fica didático e besta ou fica teórico e cabeça demais. Daí a vantagem de Bill Bryson não ser cientista, e sim um escritor e jornalista muito curioso.

Este seu livro surgiu de uma pergunta aparentemente prosaica: por que os oceanos são salgados? Para respondê-la, Bryson começou a pesquisar e ler sobre a origem do mundo, o universo, a vida e uma série de outros temas sobre os quais, para nossa sorte, ele tratou em uma linguagem que ficou no meio termo ideal entre o didático e o cabeça. Fala da idade da Terra e dos seres humanos, dá uma idéia da imensidão do universo (admito: foi só com este livro que eu pude ter noção da vastidão em que estamos imersos) e trata de geologia em termos curiosos (acho que só eu não sabia que o parque Yellowstone, nos Estados Unidos, fica em cima de um vulcão extinto). Deixa-se Uma breve história de quase tudo querendo saber muito mais sobre quase tudo. Pena que poucos consigam escrever a respeito de maneira tão agradável.

Um filme é para sempre

Um filme é para sempre
Ruy Castro (Companhia das Letras, 2006)

Ruy Castro não é apenas o melhor biógrafo que temos hoje no Brasil. É, também, o sujeito mais indicado para escrever sobre a música e o cinema de uma época que foi embora deixando muita saudade, mesmo em quem não a viveu - meu caso. Prova disso é esta coletânea de textos sobre cinema, quase toda voltada para os filmes dos anos 20 a 50 e para os artistas que neles trabalharam: Lana Turner, Frank Sinatra, Gene Kelly, Esther Williams, Clara Bow...

A graça do livro está na afinidade de Ruy Castro com o tema, visível em textos que tratam de detalhes e curiosidades dignas de aficcionado. Um deles conta a história de Max Factor, o maquiador e cabeleireiro que deu origem a uma bem-sucedida linha de cosméticos com seu nome (Factor foi esteticista da família real russa e teve de se maquiar pra fingir de doente e conseguir escapar à escravidão real). Em outros, o autor conta passagens da vida e da carreira de atores e diretores como Bette Davis, Orson Welles, Marlon Brando, Stanley Kubrick, Zsa Zsa Gabor. Ou bastidores de filmes que marcaram o cinema, a exemplo de A malvada, Cantando na chuva, 2001, Crepúsculo dos deuses. Duro é conter a vontade de sair correndo pra locadora de DVD assim que acaba cada texto do livro.

domingo, 25 de novembro de 2007

O conde de Monte Cristo

O conde de Monte Cristo
Alexandre Dumas (Barnes & Noble, 2001)

Coloquei aqui a capa de uma edição da Barnes & Noble porque, na época em que resolvi ler esse clássico, foi essa a única versão completa que encontrei - em português, só havia edições condensadas da história. (Uma certa editora Juruá, especializada em obras jurídicas, lançou o livro em três volumes, em 2003; é dessa coleção o link acima, mas não conheço e não posso dizer se a tradução tem valor.) A epopéia de Edmond Dantés, o jovem marinheiro que virou inocente útil numa trama maligna e que, por isso, viu-se afastado de seu amor e jogado numa prisão, já foi transposta algumas vezes para a tela de cinema. Mas nada supera as emoções de ler a aventura tal como Dumas a imaginou: no papel.

A trama é bem conhecida: Dantés vai parar na prisão, conhece um velho enigmático, consegue fugir e torna-se dono de uma grande fortuna. A partir daí, seu objetivo na vida passa a ser a vingança dos que o traíram - inclusive de Mercedes, seu grande amor. A graça do livro está justamente em acompanhar seu processo vingativo, levado ao fim e ao cabo. Mas, no fim, não dá pra evitar a sensação de que o pobre Dantés não se tornou um homem mais feliz ao realizar seu intento.

Cozinheiros demais

Cozinheiros demais
Rex Stout (Companhia das Letras, 1991)

Eu gosto tanto dos hábitos culinários do detetive Nero Wolfe que até comprei o The Nero Wolfe cookbook, livro que reúne todas as receitas que aparecem ao longo dos mais de 30 romances policiais e outros quase 40 contos protagonizados por ele. Gordo, preguiçoso, metódico, misógino e, acima de tudo, gourmet, Nero Wolfe vive com seu assistente, o charmoso Archie Goodwin, num sobrado da rua 35 Oeste, na Nova York dos anos 30. Dois empregados completam o time da casa: Theodore Horstmann, o especialista que cuida da coleção de orquídeas de Wolfe, e Fritz Benner, o cozinheiro suíço.

Wolfe raramente deixa sua casa - tem preguiça e medo de qualquer meio de transporte. Mas quando é convidado a dar uma palestra na reunião dos Les Quinze Maîtres, os melhores cozinheiros do mundo, ele segue até um hotel na Virgínia Ocidental, ao lado de Goodwin e de seu amigo Marko Vukcic. Pois não dá outra: depois do jantar de encerramento do evento, um dos cozinheiros é assassinado. Ninguém gostava dele, e a lista de suspeitos é enorme. Diante disso, tudo o que Wolfe deseja é esclarecer logo o mistério e poder voltar pra casa. A propósito: todos os pratos preparados pelos chefs presentes ao encontro estão no The Nero Wolfe cookbook...

Guia New York

Guia New York
Katia Zero (Makron, 1997)

O tempo é o maior inimigo de um guia turístico - mas esse, mesmo com dez anos de vida, continua a ser um excelente companheiro para quem vai a Nova York. É porque o melhor do guia não está em seus endereços - para tê-los atualizados, você pode comprar qualquer Lonely Planet ou consultar o Cityguide online -, mas nas deliciosas histórias que Katia Zero conta a respeito dos principais pontos turísticos e outros nem tanto da cidade. Só quem, como a autora, mora há décadas em NY, e sente por ela uma curiosidade infinita, consegue escrever com tanto charme e bom humor.

A graça começa, literalmente, no começo: uma seção que diz que "o melhor de Nova York é grátis ou custa menos de US$ 10" abre o livro. E segue pela descrição muito bem sacada de bairros, casas, museus, lojas, hotéis e restaurantes, tudo entremeado de comentários a respeito de quem fez o quê, quem viveu onde, que milionário construiu qual mansão, qual é o creme para o corpo que as estrelas de cinema usam - e onde comprá-lo. Não é só um guia prático; é um guia cultural, de estilo e de comportamento. Com o dólar cada vez mais acessível, está na hora de alguma editora reeditá-lo.

Jamie's dinners

Jamie's dinners
Jamie Oliver (Michael Joseph, 2004)

De todos os livros de Jamie Oliver, o chef britânico que virou celebridade de TV e astro pop da culinária, esse é o que eu mais gosto. Além de receitas fáceis e dos comentários sempre incentivadores do autor, me agradam muito o projeto gráfico e a maneira como ele organizou os capítulos - meu preferido é "family tree", em que Oliver ensina como um único ingrediente pode render variações tão diferentes, fáceis e deliciosas. Mais do que um livro de receitas, trata-se de um livro de idéias.

É disso, aliás, que trata a obra culinária de Jamie Oliver: idéias. Seus livros são bacanas não só para quem gosta de cozinhar e domina com certa facilidade a arte das panelas, mas também para quem se sente intimidado diante de facas, garfos e tábuas de cortar. Lendo, dá pra se concentrar e absorver melhor as dicas e ensinamentos que ele vai falando freneticamente em frente às câmeras de seu programa de TV. Nos dois primeiros volumes de sua autoria (O chef sem mistérios e O retorno do chef sem mistérios) há até fotos que ensinam técnicas básicas da culinária. O importante, porém, é aprender a ter idéias. Ou copiá-las - foi por causa de Jamie Oliver que eu aprendi a comer espinafre: nada como uma pitada de noz-moscada ralada na hora para mudar completamente o sabor da hortaliça. Sem segredo.

O diário de Bridget Jones

O diário de Bridget Jones
Helen Fielding (Record, 1998)

Foi o primeiro e, até agora, o único exemplar realmente interessante da chamada chick lit, uma literatura dita feminina feita para mulheres descerebradas que acham que a vida é feita de compras e de um príncipe encantado. Não que Bridget Jones, a protagonista deste livro, seja muuuuito diferente - a busca pelo príncipe encantado e os desastres decorrentes disso dão o tom de toda a história -, mas os absurdos são tantos e tão caricaturais que todo mundo se pega rindo das desventuras da protagonista. Até o filme, apesar da tonta da Renée Zellwegger, mas com os bonitões Hugh Grant e Colin Firth, é divertido.

Bridget Jones faz parte de uma legião de mulheres que passa dos 30 anos sozinha, num emprego chato e acima do peso; fuma demais, come demais, inventa dietas e passa o tempo todo correndo atrás do homem errado - coisas que a gente já viu zilhões de vezes, em varições que vão de Sex and the city aos filmes da Meg Ryan. Talvez a diferença esteja no fato de que Helen Fielding é inglesa; o humor britânico tem um refinamento muito peculiar. E embora as situações em que Bridget Jones se vê envolvida sejam muito improváveis e dignas de pastelão, acaba sendo difícil, para as mulheres, não se identificar nem que seja um pouquinho com ela.

O carrasco do amor

O carrasco do amor
Irvin D. Yalom (Ediouro, 2007)

Tenho sentimentos contraditórios por Irvin D. Yalom, autor também de Quando Nietzsche chorou. Não sei se gosto do que ele escreve ou se, no fundo, não fica em mim aquele gostinho de "a quem ele está tentando impressionar?", ou de "será que ao tentar popularizar o processo terapêutico ele não está também tentando transformá-lo numa forma pseudo-intelectual da auto-ajuda mais rasa?".

Comecei a ler este seu livro recém-publicado porque vi que nele Yalom reunia o relato de dez casos terapêuticos, e tenho grande interesse pelo assunto. Claro que em 280 páginas não dá pra ser muito profundo em nenhum deles, embora um ou outro caso sejam mais bem explorados. Mas talvez tivesse sido melhor deixar de lado alguns relatos para se dedicar mais aos que causam real interesse: o de Thelma (e seu amor irracional, o mais bem resolvido do livro), o de Marge (e sua dupla personalidade), o de Marvin (e sua impotência, que, vá lá, também mostra um desfecho satisfatório). Durante toda a leitura, porém, não consegui evitar uma certa antipatia que ... Nietzsche já havia provocado. Por exemplo: em O carrasco do amor, Yalom gasta linhas preciosas para falar de seu próprio tédio ou indiferença em relação a alguns pacientes - creio até que pela maioria deles. No fim, fiquei sem saber pra quem o livro foi escrito, pois não consigo encontrar nele a verdade de quem escreve apenas para si e muito menos o relato enriquecedor de casos clínicos; nesse ponto, acho que pouca gente consegue bater os excelentes livros de Oliver Sacks.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Não é sopa

Não é sopa
Nina Horta (Companhia das Letras, 1995)

O que não é sopa é o preço de livros no Brasil - principalmente os de culinária. E esse nem tem fotos maravilhosas (não tem foto nenhuma), não foi impresso em papel cuchê, não tem capa dura nem formato especial. Mesmo assim, se eu pudesse recomendar a alguém gastar seu rico dinheirinho (quase R$ 60) na aquisição de um único livro de culinária, esse é o que eu indicaria (minha edição, de 1995, ainda traz o preço marcado a lápis na primeira página: R$ 27. Alguém aí calcula pra ver se a inflação faz sentido?).

É preciso esclarecer: esse não é um livro apenas de receitas. Elas aparecem quase como coadjuvantes para as inspiradas crônicas de Nina Horta sobre comida. Nina ainda escreve toda quinta-feira na Folha de S. Paulo, mas tem mais graça ler tudo junto, vários textos agrupados em capítulos temáticos. São sacadíssimas suas considerações sobre comida perversa e comida de alma. Dá vontade de entrar no primeiro avião quando ela conta de jantares em Nova York e em Londres. E de ter um sítio em Parati, de ter tido aulas com Martha Kardos, de ter conhecido a empregada do "vós qué, vós faz". Só não concordo com Nina em duas coisas: eu adoro abobrinha e, na contramão de todo leitor culinário que conheço, acho Elizabeth David uma chata. Mesmo assim, sempre que posso releio alguns textos de Não é sopa - e aproveito para adaptar a divertida citação que ela faz sobre minha adorada abobrinha ao detestado pepino.

Na toca dos leões

Na toca dos leões
Fernando Morais (Planeta do Brasil, 2005)

A "biografia" que Fernando Morais escreveu sobre a agência de publicidade W/Brasil é super chapa-branca: Washington Olivetto, Javier Llussá Ciuret e Gabriel Zellmeister, os donos, são suuuuuuper criativos, suuuuuuper patrões e suuuuuuper competentes. (São mesmo, mas ninguém precisa gastar um livro inteiro para falar disso.) Dando os devidos descontos, porém, a narrativa acaba sendo bacana - pelo menos para quem, como eu, sente curiosidade pelos bastidores de campanhas publicitárias de sucesso (e inesquecíveis, como o primeiro sutiã da Valisère e o garoto Bombril).

Na época do lançamento, o livro bombou porque o deputado Ronaldo Caiado, ex-candidato a presidente da República em 1989, conseguiu uma liminar que cassava a venda da obra (Caiado aparece na biografia nas palavras de Gabriel Zellmeister, que conta como o então candidato pretendia esterilizar as mulheres do Nordeste pondo remédio na água). Liminar suspensa, todo mundo correu para o livro porque foi o primeiro lugar onde se pôde ler, em detalhes, a história do seqüestro de Washington Olivetto, em 2001 - um crime aviltante e violento, mas que teve um emocionante final feliz. Leia Na toca dos leões como quem lê uma edição especial e bem mais séria da Caras - assim não dá pra se decepcionar.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Macau

Macau
Paulo Henriques Britto (Companhia das Letras, 2003)

Meu conhecimento sobre poesia resume-se a "gosto" ou "não gosto". Nada entendo de métrica, forma, lírica e rimas. Até hoje, um poema que me emociona demais toda vez que o leio, e portanto costumo chamá-lo de meu preferido, é Ephemera, de William Butler Yeats. Outro é Ausência, de Vinicius de Moraes - o verso "Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado" já serviu como epígrafe de um texto que escrevi. Baseada em referências que não vão muito além dessas, eu posso dizer que gosto, e muito, de Macau, vencedor merecido do prêmio Portugal Telecom de 2004.

Professor de respeito e ótimo tradutor de William Faulkner, Philip Roth, Elizabeth Bishop e John Updike, entre outros (é dele a tradução do excelente Reparação, de Ian McEwan), Paulo Henriques Britto criou uma obra tão consistente quando reduzida. Macau tem apenas 80 páginas, todas cheias de densidade. O título de alguns poemas brinca com a própria forma: Três tercinas, Sete sonetos simétricos, Dez sonetóides mancos. Outros antevêem o tema: Acalanto, Três pactos de morte. Meu preferido são as Três tercinas, tão profundamente simples e tão profundamente apropriadas para uma recente fase da minha vida. Acho que é preciso um certo gênio pra escrever versos assim.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

O caso da estranha fotografia

O caso da estranha fotografia
Stella Carr (Moderna, 2003)

O primeiro livro da série infanto-juvenil Irmãos Encrenca leva o trio Marco, Eloís e Isabel ao litoral norte de São Paulo. A aventura começa já no caminho das férias, quando eles encontram um cadáver no porta-malas de um carro. Depois, topam com uma fotografia... bem, estranha. E ficam sabendo de um misterioso morador das redondezas. Marco e Eloís, os dois garotos, chegam literalmente até a cova do bandido, em Ubatuba. Isabel, mais velha e mais comedida, nem sonha com o perigo em que os irmãos se meteram. Mas no fim tudo se esclarece e dá a deixa para que uma nova encrenca apareça na vida dos três.

Lançada nos anos 70/80 (a indicação acima, de 2003, vale apenas para a edição atual), essa série teve alguns títulos, um mais delicioso que os outros: O fantástico homem do metrô, O incrível roubo da loteca, O segredo do Museu Imperial e O enigma do autódromo de Interlagos, meu favorito, onde aparece o impagável (e surpreendente) vilão Barata Voadora. Não me esqueço da cena em que Isabel vai de espiã a uma festa importante, com um anel-microfone e um brinco-fone-de-ouvido. Pra quem nasceu bem depois dos anos 70, as histórias são meio datadas - em O incrível roubo da loteca, os personagens parodiam antiquíssimos jogadores da Seleção Brasileira de futebol, e em ... Interlagos fala-se de Emerson Fittipaldi e outros pilotos daquela época. Stella Carr escreveu várias outras obras infantis e infanto-juvenis desde os Irmãos Encrenca, algumas bem divertidas. Mas nada supera, na minha memória literária, o prazer de acompanhar as aventuras de Marco, Eloís e Isabel.

Atualização - Muita gente chega ao blog procurando por "resumo de estranha fotografia" no Google. Ok, todo mundo tem o direito de ser preguiçoso. Se você é um deles, porém, que pena: não sabe o que está perdendo por não ler esse livro.

domingo, 18 de novembro de 2007

Bellini e os espíritos

Bellini e os espíritos
Tony Bellotto (Companhia das Letras, 2005)

É o terceiro e, até agora, o melhor livro da trilogia escrita por Tony Bellotto e protagonizada pelo detetive Remo Bellini - os outros dois são Bellini e o demônio (uma bela surpresa) e Bellini e a esfinge (não tão bem resolvido quanto o primeiro). Mulherengo, esperto, solitário, problemático, Bellini é herdeiro de vários outros detetives da ficção, como o Mandrake de Rubem Fonseca e o Sam Spade de Dashiell Hammett. Trabalha para a agência de Dora Lobo, no centro de São Paulo, e, nessa história, precisa descobrir quem matou um advogado durante a corrida de São Silvestre.

A partir daí, a trama vai dar na máfia chinesa e em um centro espírita, sempre pontuada por lugares e situações de São Paulo. Não seria exagero dizer que a cidade exerce um papel importante na história - ao citar a avenida Paulista, a última frase do livro dá a precisa dimensão do sofrimento reprimido de Bellini. É muito bacana ver que um escritor bom e relativamente novo, como Tony Bellotto, consegue juntar as emoções da história policial a personagens construídos com densidade. Não li Os insones, seu livro mais recente, mas fico torcendo para que ele resolva retomar logo as aventuras de Bellini.

De moto pela América do Sul

De moto pela América do Sul
Ernesto Che Guevara (Sá Editora, 2001)

Antes de se tornar o revolucionário aliado de Fidel Castro, em Cuba, o médico argentino Ernesto "Che" Guevara percorreu a América Latina, de moto, com seu amigo Alberto Granado - e a aventura dos dois está relatada neste livro, em forma de diário. Em 2004, a obra serviu como base para Walter Salles filmar Diários de motocicleta, com Gael Garcia Bernal no papel de Che. Apesar de ser um bom filme, porém, o livro é infinitamente mais divertido e esclarecedor, como quase sempre acontece com obras literárias que acabam ganhando versões para as telas.

Não fossem ambos figuras conhecidas, de existência comprovada, daria pra pensar que alguém inventou várias das histórias, de tão emocionantes e engraçadas são algumas situações. Mas há comprovação, também, de que eles realmente partiram no lombo de uma moto - e que a certa altura ela quebrou no meio do caminho, obrigando a dupla a pegar carona, viajar de barco e dormir em lugares improváveis até chegar a uma colônia de leprosos, no Peru, onde ambos passaram um bom tempo exercendo a medicina. Che Guevara é a epítome da figura polêmica: de guerrilheiro subversivo, virou ícone da contracultura; de repressor, virou símbolo da luta pela liberdade. Não dá pra ficar indiferente a ele. E por isso mesmo é muito bacana ler sobre uma época de sua vida anterior a tudo o que ele veio a representar depois.

sábado, 17 de novembro de 2007

Noites tropicais

Nelson Motta (Objetiva, 2000)

Da bossa nova ao lançamento de Marisa Monte, o jornalista Nelson Motta transitou pelos principais grupos da música brasileira nos últimos 50 anos. Ganhou festival nos anos 60, foi diretor artístico de gravadora, namorou Elis Regina, compôs sucessos para Lulu Santos e escreveu a letra de Dancin' Days, um clássico da discoteca. Também teve uma boate no Morro da Urca. E foi casado com Marília Pêra. E foi amigo de Tim Maia. E de Paulo Coelho. Conheceu, enfim, metade de quem já interessou no cenário musical do país.

Pois antes que escrevessem sua imperdível biografia, Nelson Motta resolveu, ele mesmo, botar a memória pra funcionar e contar casos de sua vida num volume agradabilíssimo, que tem o subtítulo de Solos, improvisos e memórias musicais. De como Elis Regina largou Ronaldo Bôscoli para ficar com ele (e de como o largou para ficar com César Camargo Mariano). De como Tim Maia viveu ilegal nos Estados Unidos antes de voltar para o Brasil e estourar como cantor. De como se driblava a censura na época pesada do governo militar. E por que o hit Como uma onda ganhou o improvável subtítulo Zen surfismo. Mesmo quem nunca ouviu falar de alguns persoangens do livro tem motivos para ler Noites tropicais: no mínimo, vai ficar interessado em conhecer mais da história de nossa música.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

O tempo e o vento

O tempo e o vento
Erico Verissimo (Companhia das Letras, 2004)

Não existe um volume único de O tempo e o vento: a obra toda é composta por sete livros, O continente partes 1 e 2, O retrato partes 1 e 2, O arquipélago partes 1, 2 e 3 - o que torna inviável publicá-la numa só edição. Mas acredito que não foi só a extensão da saga que levou Erico Verissimo, um dos escritores brasileiros de que mais gosto, a dividi-la parcimoniosamente. Cada livro funciona muito bem separado do outro, embora o prazer de ler tudo na seqüência seja muito maior do que conhecer cada história aos pouquinhos.

A saga começa em O continente, livro que deu origem aos dois personagens mais famosos da trama: Ana Terra e o Capitão Rodrigo Cambará. Há quem só os conheça com a cara de Glória Pires e Tarcísio Meira, por causa da minissérie da TV; há quem só os conheça pelos episódios isolados em que aparecem, tirados do contexto da epopéia e editados para leitura obrigatória em algumas escolas. São, sim, figuras marcantes, cujo espectro perpassa os sete volumes - a força de Ana Terra e o charme de Rodrigo Cambará ajudam a explicar atitudes e a personalidade de vários outros personagens. Mas seria injusto resumir O tempo e o vento apenas à existência dos dois.

Meu personagem preferido, por exemplo, é outro Rodrigo Cambará: o médico, e não o capitão, bisneto do Rodrigo original (uma árvore genealógica cai bem para quem se dispõe a ler a saga dos Terra Cambará). Embora ele apareça nas três partes do romance, é nos dois volumes de O retrato que aprendemos a amar - ou odiar - essa figura polêmica. Encantador, dissimulado, oportunista, vaidoso, cruel, mentiroso. Apaixonante. Eu me apaixonei de verdade por ele, torci por ele, sofri com ele; e nem quero saber que cara ele tinha na minissérie. É esse Rodrigo Cambará, tão humanamente imperfeito, a verdadeira força motriz de O tempo e o vento.

Na terceira parte do livro, O arquipélago, a ação e emoção que tomam conta de O continente e O retrato dão lugar principalmente às reflexões de Floriano, um dos filhos de Rodrigo, e à situação política da qual o médico foi ativo participante. Quem se interessar pela política gaúcha e brasileira de meados do século 20 encontra no romance um ótimo complemento para as aulas de história. Não foi o meu caso. Curti como poucas vezes, isso sim, uma obra que não deve nada à melhor literatura do mundo, e que dá a Erico Verissimo o direito de ser chamado de Escritor com letra maiúscula.

Atualização: E para quem chegou até esse post porque digitou "árvore genealógica de O tempo e o vento" no Google, sinto muito. Vai ter que procurar em outro blog, abrir o bolso e comprar os Cadernos de Literatura sobre o Erico Verissimo ou, muito melhor, largar a preguiça de lado e partir para a leitura dessa obra-prima.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

O enigma do quatro

O enigma do quatro
Ian Caldwell e Dustin Thomason (Planeta do Brasil, 2005)

Na rabeira do estrondoso sucesso de O código Da Vinci, um monte de gente começou a escrever tramas baseadas em segredos centenários e na descoberta de charadas culturais - pseudoliterárias, pseudo-intelectuais, pseudocientíficas. Mas pouca gente conseguiu fazer isso direito; uma honrosa exceção é Matthew Pearl, autor de O clube Dante. Nesse O enigma do quatro, nem a escrita a quatro mãos consegue interessar minimamente o leitor. E quem se dispõe a seguir o livro até o fim sai dele decepcionado: se a trama não convence, sua resolução convence menos ainda.

Na história, dois estudantes de Princeton tentam descobrir o significado da Hypnerotomachia Poliphili, uma hermética obra literária da Renascença. E dá-lhe teoria, dá-lhe tentativa e erro, dá-lhe atribuições mirabolantes de significados - uma das resoluções para o enigma era parecida com o código "secretíssimo" que eu e uma amiga usávamos para escrever cartas uma para a outra aos 15 anos de idade. Totalmente dispensável.

Meia-noite no jardim do bem e do mal

Meia-noite no jardim do bem e do mal
John Berendt (Objetiva, 1995)

Leia o livro, veja o filme, ouça o disco - eu fiz tudo isso com Meia-noite no jardim do bem e do mal, uma história muito menos assustadora do que o nome sugere, e por causa dela ainda morro de vontade de conhecer Savannah, nos Estados Unidos, cenário e parte importante da trama. O livro de John Berendt fala de um crime real com personagens reais: o assassinato do jovem Danny Hansford pelo milionário Jim Williams. Ao acompanhar o julgamento de Williams, Berendt vai descobrindo não só uma cidade peculiar, mas seus igualmente peculiares personagens. Um deles é um músico doidão. Outro, sua namorada cantora. E o melhor deles: Lady Chablis, um travesti que parece saber tudo sobre o que teria levado o ricaço a cometer o crime.

Tá certo que o blog é sobre leituras, mas não dá pra deixar de comentar o CD da trilha sonora, com músicas de Johnny Mercer - um compositor nascido e enterrado em Savannah. A versão do ator Kevin Spacey para That Old Black Magic é das melhores que já ouvi. E há pelo menos um excelente motivo para quem leu o livro querer também ver o filme dirigido por Clint Eastwood: o papel de Lady Chablis foi reservado para a própria, que manda muito bem no personagem que criou.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Cartas a um jovem terapeuta

Cartas a um jovem terapeuta
Contardo Calligaris (Campus, 2007)

Contardo Calligaris é o único colunista da Ilustrada que eu ainda faço questão de ler. Primeiro, ele escreve bem. Depois, tem sempre um comentário belamente reflexivo sobre uma notícia recente, um filme em cartaz, um livro, um disco - ou sobre qualquer aspecto da vida em geral. Foram particularmente brilhantes seu texto sobre o suicídio ("O ato suicida guarda sua dignidade porque é imprevisível como qualquer ato humano"), em setembro/2007, e um outro, mais antigo, que tenta responder "por que somos infelizes em amor" numa excelente sacada a partir do filme Closer.

Seu Cartas a um jovem terapeuta faz parte de uma coleção de livros que trazem, como autores, sempre alguém bem-sucedido em sua profissão. A tarefa é comentar a lida e dar dicas para quem queira seguir tal ou tal carreira - há cartas para um jovem publicitário, empreendedor, político, advogado, chef, atleta e até aos jovens indecisos. Calligaris dá conta do recado: trata de questões como o que é preciso para se sair bem na profissão, a importância do próprio terapeuta passar por terapia, qual a formação desejável. Para quem, como eu, não quer se transformar em terapeuta mas apenas "ouvir" o que ele tem a dizer, às vezes o livro fica chatinho. Vale, porém, por dois aspectos: as ocasiões em que ele fala de experiências pessoais (e como seria bacana ler mais sobre isso!) e o penúltimo capítulo, sobre infância, traumas e a importância de voltar no tempo para tentar compreender atitudes posteriores e nossa relação com o mundo. É um capítulo que vale pelo livro todo.

sábado, 10 de novembro de 2007

Vastas emoções e pensamentos imperfeitos

Rubem Fonseca (Companhia das Letras, 1988)

Eu adoro esse romance quase surreal de Rubem Fonseca, um samba do crioulo doido que mistura fantasias de Carnaval, um tradutor à beira da morte, os sonhos malucos de um cineasta, uma bailarina morta, uma bailarina viva, um velho manuscrito perdido, viagens à Alemanha e a Minas Gerais. Com todos esses elementos, não dá pra esperar muita verossimilhança da trama - e isso não representa o menor problema. Nem dá, também, pra contar direito o enredo do livro. Trata-se de busca, sem dúvida, mas a certa altura elas são tantas, e tão diferentes, que quase não dá pra isolar nenhuma delas.

Acima de tudo, de Vastas emoções e pensamentos imperfeitos eu gosto do título brilhante, uma frase que remete ao A vida é feita de som e fúria que, por sua vez, saiu de um poema do Shakespeare. E gosto muito, muito também, de uma frase do livro: "Quem pode explicar por que o desejo por uma mulher linda pode acabar?", epígrafe de alguma coisa que ainda hei de escrever.

O segredo

O segredo
Rhonda Byrne (Ediouro, 2007)

E já que se trata de auto-ajuda, eis o maior fenômeno do gênero em 2007. Primeiro é preciso confessar que li O segredo só até a metade (azar, parei antes da parte sobre ficar milionário). Depois, admitir que esses primeiros capítulos me fizeram bem na época em que foram lidos. Claro que é raso. Claro que o "segredo universal" conhecido por Platão, Da Vinci, Beethoven, etc etc etc - ou seja, a força do pensamento positivo - não passa de patacoada. Apropriar-se de elementos da física quântica, um termo que impõe respeito, parece ser a grande sacada da auto-ajuda atual. Tem gente que cai. Tem gente que eu respeito e cai. E nem vamos falar de méritos literários.

Mas então por que os primeiros capítulos do livro me fizeram bem quando eu os li? Acho que é porque eu estava desesperada. Acho que é porque eu passava por uma fase em que nada conseguia me livrar de pensamentos horrorosos, de muita dor. E por um tempo - sei lá quanto, duas semanas - eu me forçava a trocar de idéia sempre que o desespero aparecia. Pensar em outra coisa sempre que a dor voltava. Não deu certo, é óbvio. Mas o livro me deixa com sentimentos ambíguos. Ao mesmo tempo em que eu acharia ótimo se alguém realmente progredisse lendo essas coisas, tenho raiva de obras pseudo-intelectuais que desviam ainda mais a inteligência humana da racionalidade. Física quântica? Ah, tá.

Esquadrão da moda

Esquadrão da moda
Trinny Woodall e Susannah Constantine (Global, 2005)

Livro de auto-ajuda é isso aí: muda a vida da gente. Trinny e Susannah são duas inglesas que apresentam um programa sobre moda na televisão (foi exibido no Brasil pelo canal People & Arts, não sei se continua no ar). E o bom das duas é que, longe do fashionismo imperante em revistas e projetos do gênero, elas partem da mulher real para mostrar como, mesmo com corpos imperfeitos e gostos às vezes duvidosos, a gente pode, sim, se sentir melhor nas roupas que usa. Favorece a figura, denota cuidado, impõe respeito e, o principal, aumenta a auto-estima.

As duas autoras - Trinny alta, esquelética, sem peito nem bunda, Susannah mais baixa, gordinha, no gênero voluptuosa - posaram para todas as fotos do livro exemplificando diversos tipos físicos: a reta, a peituda, a gorducha, a perna fina, a pescoçuda e várias outras. A partir daí, dizem o que cai bem, o que cai mal, que cores podem favorecer, e quando a gente vê está testando as dicas delas, e vendo que funciona de verdade, até que um dia, voilà, somos novas mulheres mais seguras de si dentro da roupa que nos veste. Um ótimo complemento para o livro é outra obra das mesmas autoras: O que suas roupas dizem sobre você?, que também fala de tipos físicos mas, principalmente, orienta a maneira de vestir a partir de modos de vida: a mulher que vive em função dos filhos, a executiva, a de meia-idade, a esportista, a gatinha...

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

O professor e o demente

O professor e o demente
Simon Winchester (Record, 1999)

Ninguém nunca pára pra pensar no trabalhão que dá escrever um dicionário - que dirá o Oxford English Dictionary, a maior referência do idioma inglês no mundo, inicialmente publicado em 10 volumes depois de 70 anos de trabalho rigoroso. É basicamente essa história que Winchester conta em O professor e o demente - de onde surgiu a idéia para a primeira grande compilação de termos da língua inglesa, quem foram os homens que levaram o projeto à frente, em que obras se basearam, quais foram seus "antepassados". Parece chato e árduo; não é. Quem gosta de palavras vai adorar conhecer o método adotado pelo OED para começar a existir e seu criativo sistema de colaboradores voluntários. Acima de tudo, vai se surpreender com as duas figuras principais do livro, o professor (James Murray, o editor mais importante do OED) e o demente (William Chester Minor, médico do Exército americano, assassino confesso e interno de um sanatório judicial, um dos mais valiosos colaboradores do OED durante vinte anos).

Em memória a James Murray e William Minor, porém, a edição brasileira do livro poderia ter sido mais cuidadosa. Há inúmeros casos de parênteses e travessões deslocados, citações que começam e não terminam com aspas, erros crassos de pontuação. O projeto gráfico também não é dos melhores, mas isso acaba sendo o menor dos defeitos diante de tanto descaso com a preparação do texto. Pena. Obras sobre o Oxford English Dictionary merecem consideração e respeito minimamente compatíveis com sua importância para as letras em todo o mundo.

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Chama e cinzas

Chama e Cinzas
Carolina Nabuco (José Olympio, 1947)

Alguém há de se lembrar de uma novela exibida nos anos 80, chamada Bambolê. Pois era baseada - ainda que de longe - neste livro de Carolina Nabuco (filha e biógrafa de Joaquim Nabuco), uma historinha aparentemente ingênua e agradável ambientada no Rio de Janeiro, mas que contava um drama... bem, novelesco. Não me lembro do nome dos personagens além de Álvaro, um viúvo pai de três filhas, meio falido, que gostava de levar a vida na flauta. Cabia à filha mais velha pensar na família: ver se o dinheiro dava para as compras, providenciar as refeições, cuidar para que a casa estivesse em ordem. Vai que um dia essa filha número 1 conhece um rapaz bonitão e simpático, e se interessa por ele. Vai que a filha número 3, a irmã mais nova, se apaixona pelo rapagão - e ele escolhe a mais moça em lugar da número 1. Mais enredo de novela? A filha número 1 abre mão do namorado em favor da irmã e acaba se casando com um homem bem mais velho, amigo de seu pai.

É novelinha, é água com açúcar, e também bem bacana. Carolina Nabuco é autora de outro livro que foi parar nas telinhas: A sucessora. Consta, aliás, que esse seu livro foi plagiado por Daphne du Maurier, autora de Rebecca - um sucessão nas telonas de cinema pelas mãos de Alfred Hitchcock. Que as histórias são muito semelhantes, não há dúvida. E o livro de Carolina Nabuco foi publicado em 1934, quatro anos antes de Rebecca.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

O caso da borboleta Atíria

O caso da borboleta Atíria
Lúcia Machado de Almeida (Ática, 1999)

Clássico dos clássicos de quem viveu a infância e a pré-adolescência nos anos 70-80, O caso da borboleta Atíria faz parte da Coleção Vagalume, uma série de livros que marcaram época (O escaravelho do diabo, O cachorrinho Samba, A montanha mágica, Spharion - esse vale um post -, A ilha perdida, O mistério do cinco estrelas...). Li nem sei quantas vezes, todas sentindo a mesma aflição pelo defeito na asinha de Atíria, a curiosidade para saber quem estava matando as borboletas da floresta, o sofrimento pela câmara de tortura dos insetos e o medo do Esqueleto-vivo. Imagina, o vilão do livro se chama Esqueleto-vivo!

Atíria é uma borboleta órfã criada por uma Jitiranabóia. Por causa de um defeito em suas asinhas, ela não pode voar longas distâncias - e todos os insetos colaboram para ajudá-la em suas revoadas pela mata. Só que de repente surge um perigo para o mundo das borboletas: um ser misterioso - uma mariposa? uma coruja? - começa a matar algumas delas. Quando Atíria conhece o Príncipe Grilo, sua vida também passa a correr perigo. E corajosamente a borboletinha vai enfrentar os inimigos (e passar pela tal câmara de tortura, e enfrentar o Esqueleto-vivo) até desvendar todo o mistério.

Atualização - Muita gente chega ao blog procurando por "resumo de borboleta atíria" no Google. Ok, todo mundo tem o direito de ser preguiçoso. Se você é um deles, porém, que pena: não sabe o que está perdendo por não ler esse livro.

Minha vida de menina

Minha vida de menina
Helena Morley (Companhia das Letras, 1998)

Desde que li Minha vida de menina pela primeira vez, e eu devia ser adolescente na época, enfiei na cabeça que um dia teria de conhecer Diamantina. E nem sei descrever direito a emoção que eu senti quando finalmente pisei na cidade, quando passei pela rua Jogo da Bola, vi a rua Direita e a igreja matriz - parecia que eu estava dentro do livro. Todos esses lugares são tema recorrente do diário escrito entre 1893 e 1895 pela jovem Helena, pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant. Há uma tese de que Alice escreveu tudo já idosa, e que seu caderno confessional nunca existiu. Não importa: diário ou lembranças deram origem a uma narrativa envolvente que nos leva de volta ao cotidiano de uma adolescente no final do século 19, seu dia-a-dia entre a casa da avó, que lhe fazia todas as vontades, e o convívio com tias e primos, a ausência freqüente do pai inglês, minerador de diamantes na região, as brigas com os irmãos, a escola, as festas.

Algumas histórias que Helena/Alice conta não saem nunca da minha memória: os uniformes que as tias faziam, o vestido da irmã que apareceu manchado dentro do armário depois da garota rogar uma praga, as mortes emocionantes da avó e de uma antiga escrava, as travessuras que aprontavam na casa da tia. Tenho certeza de que conhecer Diamantina foi mais especial porque eu levei comigo as lembranças de um livro muito, muito querido.

domingo, 4 de novembro de 2007

O vulto das torres

O vulto das torres
Lawrence Wright (Companhia das Letras, 2007)

Sensacional trabalho de reportagem do jornalista Lawrence Wright, que não por acaso ganhou o prêmio Pulitzer com essa obra. Ao contrário do que a capa dá a entender, o livro não trata apenas do caminho que a Al-Qaeda levou até o 11 de setembro. A história do fundamentalismo islâmico começa muito antes, antes mesmo de Osama Bin Laden aparecer no mapa. Wright retorna no tempo até 1948, quando um certo Sayyid Qutb vai estudar nos Estados Unidos e, de volta ao Egito, em 1950, começa a pregar o radicalismo e transforma-se num dos primeiros mártires do movimento.

O livro mostra como, depois de Qutb, surgiu o radicalismo islâmico mais violento. Como a família Bin Laden virou multimilionária trabalhando em empreiteiras na Arábia Saudita. Como Osama Bin Laden conheceu e se aliou a seu braço direito, Ayman al-Zawahiri, para muitos o verdadeiro cérebro da Al-Qaeda. Com os primeiros ataques do grupo terrorista a bases americanas na África, Wright começa a traçar um paralelo entre as investidas de Bin Laden e o agente do FBI John O'Neill, um bon vivant obcecado em encontrar e prender o homem que as agências de segurança começavam a apontar como um grande perigo para o mundo ocidental. O fim da história, todos conhecemos: os ataques bem-sucedidos do 11 de setembro, a invasão desastrosa do Afeganistão, a busca infrutífera pelo terrorista. Mas Wright vai além ao deixar no leitor - a partir de fatos confirmados e informações verídicas - a impressão de que CIA e FBI poderiam ter evitado a tragédia se não fossem tão cabeçudamente orgulhosos e, de certa maneira, inimigos.

Na praia

Na praia
Ian McEwan (Companhia das Letras, 2007)

Como já disse em outro post, considero Ian McEwan um dos melhores escritores contemporâneos vivos. E dá raiva quando ele lança livros tão pequenos assim. Na tradução de Bernardo Carvalho para a Companhia das Letras, são só 128 páginas - o tamanho certo, é verdade, para narrar as desventuras de um casal em sua noite de núpcias, mas pequeno demais para quem gosta da prosa envolvente do escritor.

Edward e Florence casam-se em 1962, antes que os Beatles, a minissaia e a revolução sexual virem o mundo de cabeça para baixo. Ambos são virgens, nenhum dos dois sabe o que fazer a respeito do sexo, são pudicos demais para tocar no assunto um com o outro. E então o desastre acontece. Uma amiga minha achou a história tristíssima e eu, em princípio, não achei tanto assim. Mas então fico pensando que o que mais dói é saber que esses casos podem muito bem ter acontecido, aos milhares, por falta de comunicação. E que provavelmente milhões de mulheres mundo afora também já propuseram aos maridos - ou aceitaram quando o eles o faziam - tratos como o que Florence sugere a Edward. Poderiam ter sido nossas avós, nossas mães. Tomara que não continue conosco, nem com nossas filhas.

Freud - Uma vida para o nosso tempo

Freud - Uma vida para o nosso tempo
Peter Gay (Companhia das Letras, 1989)

É preciso fôlego e um considerável investimento de tempo para percorrer as 700 páginas da biografia de Freud, mais de 100 delas só de notas e referências bibliográficas. Compensa: Peter Gay faz um apanhado completo não só da vida como da obra do criador da psicanálise. O começo difícil, a influência de Breuer, os amigos, os desafetos, as proposições que se mostraram equivocadas, os acertos, as expectativas em relação à psicanálise - tudo aparece sem concessões ou reverência e convida o leitor a percorrer os caminhos que levaram Freud à criação de sua teoria revolucionária. "A psicanálise", escreve Peter Gay, "dera o terceiro golpe histórico na megalomania da humanidade. Copérnico havia estabelecido que a Terra não é o centro do Universo, Darwin fizera a humanidade ingressar no reino animal e agora ele, Freud, estava ensinando ao mundo que o ego, em larga medida, é servo das forças inconscientes e incontroláveis da mente."

Em relação à vida de Freud, Gay fez um trabalho exemplar - ele retoma até os pensamentos e lembranças do garoto Sigmund para justificar seu futuro processo criativo. Só senti falta de mais análise das obras. Por me sentir incapaz de ler o que Freud escreveu, gostaria que alguém as traduzisse pra mim como resumos de vestibular (e Gay faria isso brilhantemente). Para mim está muito claro que o pensamento freudiano é essencial para a reflexão sobre quem se é, por que se é, como se é - e sobre as atitudes que tomamos a partir disso, e sobre os traumas que ganhamos, e as neuroses que adquirimos. O bom é que geralmente tem cura, mesmo que pra isso seja preciso enfrentar um longo e muitas vezes doloroso processo terapêutico.

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

O passado

O passado
Alain Pauls (Cosac Naify, 2007)

Comprei O passado assim que li uma entrevista de Alain Pauls publicada na Folha de S. Paulo e vi o escritor falando ao público na Livraria Cultura, em julho - meu exemplar está até autografado. Mas não o abri de imediato; imaginei que havia muito em comum entre a história de Rímini e Sofia e uma história vivida por mim recentemente, e que terminou de uma maneira muito cruel. O nome Sofia, a escrita, os bilhetes, tudo o que eu sabia existir no livro me afastou dele por alguns meses. Depois, inventei de ler a biografia do Freud pelo Peter Gay, um catatau de 700 páginas que me consumiu um tempão. Ontem à noite, porém, eu não tinha mais desculpa: éramos eu e O passado, e fui em frente. Li três capítulos, me dei por vencida. Desculpe, Alain Pauls, você é bom demais na sincronicidade pra que eu consiga ler seu romance agora. Estamos, eu e ele, muito presentes em tudo ali, em Rímini e Sofia, nas lembranças, nas referências, nos bilhetes. Os bilhetes... Senti que eu ia começar a chorar. Fechei o livro, pus de lado. Hoje é dia dos mortos, mas a ferida ainda está longe de cicatrizar.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Quase tudo

Quase tudo
Danuza Leão (Companhia das Letras, 2005)

É preciso muita coragem pra confessar o desconforto diante de um neto porque ele faz lembrar o filho que morreu. Pra admitir que, de repente, ver o neto se transformou numa tortura. Que a alegria de ter o neto por perto não compensava a lembrança do filho morto. E Danuza Leão faz tudo isso neste livro, que só por essa história já valeria como prova de bravura - nenhum ser humano fraco conseguiria admitir isso em público. O Quase tudo do título se justifica: para tristeza do leitor, não cabe num único livro a vida toda dessa mulher, que atravessou as últimas cinco décadas da história do país na posição privilegiada tanto de protagonista quanto de espectadora. Pra ficar só nuns poucos: Danuza é irmã de Nara Leão, foi top model internacional numa época em que isso era só para poucas e boas européias, casou-se com o jornalista Samuel Wainer, depois com o compositor Antônio Maria, depois com o também jornalista Renato Machado. Sua filha, Pinky Wainer, é referência nas artes gráficas brasileiras, e uma das netas, Rita, desponta como estilista.

Ainda por cima escreve bem, a danada. Adoro as crônicas alto-astral que ela escreve aos domingos, na Folha (ela só parece sair do sério quando fala da situação desmazelada do país). Nessas suas memórias, o tom é o mesmo: sempre positivo, mesmo na hora das adversidades. Danuza esconde o jogo muitas vezes, é claro (não dá pra entender como, passando por tanta fase sem dinheiro, continuavam freqüentes as viagens e temporadas em Paris), mas não faz diferença. Importa é o que ela abre, o que ela diz, e a maneira como conta histórias marcantes em sua vida - a doença fatal da irmã, a morte de Wainer e a de Maria, o acidente que tirou a vida de seu filho. Resta torcer para que, a exemplo da atriz Isabella Rossellini (que lançou um livro de memórias chamado Some of me, na esperança de depois lançar More of me e All of me), Danuza também tenha planos de escrever um Mais de tudo.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

O cantor de tango

Tomás Eloy Martínez (Companhia das Letras, 2004)

Quem só conhece a Buenos Aires da Recoleta, da Calle Florida e da Casa Rosada vai se espantar com a cidade brilhantemente descrita por Tomas Eloy Martinez neste romance. O Palácio de Águas da avenida Córdoba, o largo Del Resero, o Parque Chas, nenhum desses lugares faz parte do circuito turístico portenho - mas, em comum, guardam o motivo que leva o cantor do título, Julio Martel, a se apresentar em cada um deles. Velho, doente e inválido, Martel já não canta mais em público. E, para desespero de Bruno Cadogan, o americano que viaja a Buenos Aires apenas para encontrá-lo, também não dá mostras de querer qualquer contato com estranhos. Suas apresentações são todas sigilosas, para público nenhum; Martel canta apenas para si mesmo no que parece uma tentativa de homenagem ou expiação.

O livro acompanha as tentativas que Bruno Cadogan faz para encontrar o cantor de tango numa Buenos Aires corroída pelo desastre financeiro e a falta de perspectiva. Embora as resenhas, na época de lançamento do livro, concordassem em salientar esse ponto, a cidade à beira da falência que Tomás Eloy Martínez encontrou depois de anos morando fora do país, eu não acho que isso tenha maior importância na história. Bom é saber dos lugares, e do que aconteceu em cada um deles, para seguir no labirinto sentimental e geográfico que move as escolhas de Martel.

domingo, 28 de outubro de 2007

O morro dos ventos uivantes

O morro dos ventos uivantes
Emily Brontë (Record, 1996)

Meu primeiro contato com este livro aconteceu cedo demais - pior, numa edição condensada que veio junto com alguma revista que minha mãe lia nos anos 80. Eu era adolescente e não entendi nada, nada, da história de Heathcliff e Catherine, um fantasma batendo na janela em busca do amor do passado, jovens de nomes idênticos em tempos diferentes. Por fim, com 20 e poucos anos, resolvi tirar o livro a limpo; queria entender a história de uma vez. E fui presa fácil da trama, que procuro reler sempre que possível, torcendo pra que dessa vez Cathy engula o esnobismo e Heathcliff engula o orgulho, pra que os dois finalmente fiquem juntos para sempre.

Mas será que não ficaram? O amor dos dois, violento, tortuoso e dolorido como foi, é dos sentimentos mais fortes da literatura - e, como mostra Heathcliff ao se humilhar diante do que pensa ser o fantasma de Catherine na janela, sobrevive até à morte. Gigantesca também é a vingança que ele impinge a toda a família de Cathy, a começar pelo irmão, Hindley, e à de Edgar Linton, de quem se torna cunhado. Em O morro dos ventos uivantes, os sentimentos são tão fortes que a parte da história que fica sem esclarecimentos (de onde, afinal, veio Heathcliff? E como depois ele ficou tão rico?) não tem a mínima importância.

Senhorita Smila e o sentido da neve

Senhorita Smilla e o sentido da neve
Peter Hoeg (Companhia das Letras, 1994)

O título em português até tenta, mas a aliteração em inglês soa infinitamente melhor: Smilla's sense of snow. Já faz tempo que li este livro, e nunca mais o retomei - vê-lo na estante causa uma sensação de estranhamento, uma certa aflição -, portanto o que segue são apenas lembranças. Comecei o livro achando que era um policial, a história de uma moça que investiga a morte de um garoto, seu vizinho. Engano: o componente policial até existe, porque o garoto foi, sim, assassinado, mas o que segue é quase a questão existencial de Smilla, meio dinamarquesa meio groenlandesa, e suas reflexões sobre a sociedade em que vive (em contraste com os hábitos inuit de seus antepassados), os homens e o gelo (Smilla é uma geóloga especialista em neve).

Lembro de ter simpatizado com Smilla, mas não consegui entrar muito em sua viagem. E não me recordo direito do desfecho da história - mais de dez anos depois, ele me volta à cabeça como um tanto forçado. Pouco depois houve um filme baseado no livro, com a bela e fraquinha Julia Ormond no papel de Smilla, e um inadequado Gabriel Byrne como o mecânico, que no livro é um homão. Se bem me lembro, o final do filme é ainda mais absurdo. Relendo o que escrevi, parece que não gostei do livro. Mas gostei, sim, e talvez seja hora de relê-lo para descobrir o que tanto me causa estranhamento ao vê-lo na estante.

sábado, 27 de outubro de 2007

A invenção de Morel

A invenção de Morel
Adolfo Bioy Casares (Cosac Naify, 2006)

A comparação pode até parecer injusta, mas eu não me conformo que não se fale tanto de Bioy Casares como se fala de Borges. Argentinos, contemporâneos, amigos - mas Bioy Casares, pra mim, foi muito melhor e mais interessante do que o colega (ok, admito abertamente: acho Borges um chato). Seria injusto classificar A invenção de Morel apenas como ficção científica, embora seja, e das boas (ninguém me tira da cabeça que os criadores de Lost beberam na fonte de BC). Mas junto vêm o thriller, a investigação, o romance, o drama humano.

O livro é narrado por um fugitivo da Justiça, que não se sabe que crime cometeu, e que escreve um diário durante sua estadia na ilha onde vai parar depois de escapar da prisão. A ilha, dizem, foi abandonada por causa de uma estranha doença que corrói as pessoas. Mas não é o que parece acontecer, pois logo o narrador percebe que há mais gente ali além dele - principalmente uma jovem, Faustine, por quem ele se apaixona e que não se dá conta de sua presença na ilha. Livro bom é o que dá aflição, e dá aflição ver como o narrador inutilmente quer se fazer notar, e como ele persegue Faustine e os outros habitantes até descobrir que eles não existem: a invenção de Morel é uma máquina que retém as feições e vozes das pessoas, mas que com o tempo contamina os retratados até a morte. O final é esperado, mas não poderia ser diferente: só mostra o domínio de Bioy Casares numa narrativa que o amigo Borges (chatinho, mas respeitado) chamou de "perfeita".