terça-feira, 30 de outubro de 2007

Quase tudo

Quase tudo
Danuza Leão (Companhia das Letras, 2005)

É preciso muita coragem pra confessar o desconforto diante de um neto porque ele faz lembrar o filho que morreu. Pra admitir que, de repente, ver o neto se transformou numa tortura. Que a alegria de ter o neto por perto não compensava a lembrança do filho morto. E Danuza Leão faz tudo isso neste livro, que só por essa história já valeria como prova de bravura - nenhum ser humano fraco conseguiria admitir isso em público. O Quase tudo do título se justifica: para tristeza do leitor, não cabe num único livro a vida toda dessa mulher, que atravessou as últimas cinco décadas da história do país na posição privilegiada tanto de protagonista quanto de espectadora. Pra ficar só nuns poucos: Danuza é irmã de Nara Leão, foi top model internacional numa época em que isso era só para poucas e boas européias, casou-se com o jornalista Samuel Wainer, depois com o compositor Antônio Maria, depois com o também jornalista Renato Machado. Sua filha, Pinky Wainer, é referência nas artes gráficas brasileiras, e uma das netas, Rita, desponta como estilista.

Ainda por cima escreve bem, a danada. Adoro as crônicas alto-astral que ela escreve aos domingos, na Folha (ela só parece sair do sério quando fala da situação desmazelada do país). Nessas suas memórias, o tom é o mesmo: sempre positivo, mesmo na hora das adversidades. Danuza esconde o jogo muitas vezes, é claro (não dá pra entender como, passando por tanta fase sem dinheiro, continuavam freqüentes as viagens e temporadas em Paris), mas não faz diferença. Importa é o que ela abre, o que ela diz, e a maneira como conta histórias marcantes em sua vida - a doença fatal da irmã, a morte de Wainer e a de Maria, o acidente que tirou a vida de seu filho. Resta torcer para que, a exemplo da atriz Isabella Rossellini (que lançou um livro de memórias chamado Some of me, na esperança de depois lançar More of me e All of me), Danuza também tenha planos de escrever um Mais de tudo.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

O cantor de tango

Tomás Eloy Martínez (Companhia das Letras, 2004)

Quem só conhece a Buenos Aires da Recoleta, da Calle Florida e da Casa Rosada vai se espantar com a cidade brilhantemente descrita por Tomas Eloy Martinez neste romance. O Palácio de Águas da avenida Córdoba, o largo Del Resero, o Parque Chas, nenhum desses lugares faz parte do circuito turístico portenho - mas, em comum, guardam o motivo que leva o cantor do título, Julio Martel, a se apresentar em cada um deles. Velho, doente e inválido, Martel já não canta mais em público. E, para desespero de Bruno Cadogan, o americano que viaja a Buenos Aires apenas para encontrá-lo, também não dá mostras de querer qualquer contato com estranhos. Suas apresentações são todas sigilosas, para público nenhum; Martel canta apenas para si mesmo no que parece uma tentativa de homenagem ou expiação.

O livro acompanha as tentativas que Bruno Cadogan faz para encontrar o cantor de tango numa Buenos Aires corroída pelo desastre financeiro e a falta de perspectiva. Embora as resenhas, na época de lançamento do livro, concordassem em salientar esse ponto, a cidade à beira da falência que Tomás Eloy Martínez encontrou depois de anos morando fora do país, eu não acho que isso tenha maior importância na história. Bom é saber dos lugares, e do que aconteceu em cada um deles, para seguir no labirinto sentimental e geográfico que move as escolhas de Martel.

domingo, 28 de outubro de 2007

O morro dos ventos uivantes

O morro dos ventos uivantes
Emily Brontë (Record, 1996)

Meu primeiro contato com este livro aconteceu cedo demais - pior, numa edição condensada que veio junto com alguma revista que minha mãe lia nos anos 80. Eu era adolescente e não entendi nada, nada, da história de Heathcliff e Catherine, um fantasma batendo na janela em busca do amor do passado, jovens de nomes idênticos em tempos diferentes. Por fim, com 20 e poucos anos, resolvi tirar o livro a limpo; queria entender a história de uma vez. E fui presa fácil da trama, que procuro reler sempre que possível, torcendo pra que dessa vez Cathy engula o esnobismo e Heathcliff engula o orgulho, pra que os dois finalmente fiquem juntos para sempre.

Mas será que não ficaram? O amor dos dois, violento, tortuoso e dolorido como foi, é dos sentimentos mais fortes da literatura - e, como mostra Heathcliff ao se humilhar diante do que pensa ser o fantasma de Catherine na janela, sobrevive até à morte. Gigantesca também é a vingança que ele impinge a toda a família de Cathy, a começar pelo irmão, Hindley, e à de Edgar Linton, de quem se torna cunhado. Em O morro dos ventos uivantes, os sentimentos são tão fortes que a parte da história que fica sem esclarecimentos (de onde, afinal, veio Heathcliff? E como depois ele ficou tão rico?) não tem a mínima importância.

Senhorita Smila e o sentido da neve

Senhorita Smilla e o sentido da neve
Peter Hoeg (Companhia das Letras, 1994)

O título em português até tenta, mas a aliteração em inglês soa infinitamente melhor: Smilla's sense of snow. Já faz tempo que li este livro, e nunca mais o retomei - vê-lo na estante causa uma sensação de estranhamento, uma certa aflição -, portanto o que segue são apenas lembranças. Comecei o livro achando que era um policial, a história de uma moça que investiga a morte de um garoto, seu vizinho. Engano: o componente policial até existe, porque o garoto foi, sim, assassinado, mas o que segue é quase a questão existencial de Smilla, meio dinamarquesa meio groenlandesa, e suas reflexões sobre a sociedade em que vive (em contraste com os hábitos inuit de seus antepassados), os homens e o gelo (Smilla é uma geóloga especialista em neve).

Lembro de ter simpatizado com Smilla, mas não consegui entrar muito em sua viagem. E não me recordo direito do desfecho da história - mais de dez anos depois, ele me volta à cabeça como um tanto forçado. Pouco depois houve um filme baseado no livro, com a bela e fraquinha Julia Ormond no papel de Smilla, e um inadequado Gabriel Byrne como o mecânico, que no livro é um homão. Se bem me lembro, o final do filme é ainda mais absurdo. Relendo o que escrevi, parece que não gostei do livro. Mas gostei, sim, e talvez seja hora de relê-lo para descobrir o que tanto me causa estranhamento ao vê-lo na estante.

sábado, 27 de outubro de 2007

A invenção de Morel

A invenção de Morel
Adolfo Bioy Casares (Cosac Naify, 2006)

A comparação pode até parecer injusta, mas eu não me conformo que não se fale tanto de Bioy Casares como se fala de Borges. Argentinos, contemporâneos, amigos - mas Bioy Casares, pra mim, foi muito melhor e mais interessante do que o colega (ok, admito abertamente: acho Borges um chato). Seria injusto classificar A invenção de Morel apenas como ficção científica, embora seja, e das boas (ninguém me tira da cabeça que os criadores de Lost beberam na fonte de BC). Mas junto vêm o thriller, a investigação, o romance, o drama humano.

O livro é narrado por um fugitivo da Justiça, que não se sabe que crime cometeu, e que escreve um diário durante sua estadia na ilha onde vai parar depois de escapar da prisão. A ilha, dizem, foi abandonada por causa de uma estranha doença que corrói as pessoas. Mas não é o que parece acontecer, pois logo o narrador percebe que há mais gente ali além dele - principalmente uma jovem, Faustine, por quem ele se apaixona e que não se dá conta de sua presença na ilha. Livro bom é o que dá aflição, e dá aflição ver como o narrador inutilmente quer se fazer notar, e como ele persegue Faustine e os outros habitantes até descobrir que eles não existem: a invenção de Morel é uma máquina que retém as feições e vozes das pessoas, mas que com o tempo contamina os retratados até a morte. O final é esperado, mas não poderia ser diferente: só mostra o domínio de Bioy Casares numa narrativa que o amigo Borges (chatinho, mas respeitado) chamou de "perfeita".

On writing

On writing
Stephen King (Pocket Books, 2000)

Eu nunca tinha lido uma linha escrita por Stephen King - no máximo, visto alguns filmes baseados em suas obras, como os ótimos Conta comigo e Louca obsessão. Até que uma amiga indicou esse On writing, misto de memórias e lição de escrita (não posso questionar a qualidade literária de King, já que não li sua ficção, mas é preciso concordar que de alguma coisa ele entende, ou não criaria livros que vendem feito pão quentinho).

A parte autobiográfica do livro é bem legal: eu não tinha idéia de que Stephen King resolveu virar escritor tão cedo, que ele é casado há séculos com a mesma mulher, nem da gravidade do acidente que ele sofreu em 1999. Mas o que me interessava mesmo eram os "segredos" do escritor, convenientemente reunidos num capítulo chamado "Toolbox". Como Stephen King desde o começo alerta que qualquer livro que se pretenda ensinar a escrever é bullshit, eu estava curiosa pra saber do que ele iria tratar. E ele trata do básico, do mais simples de tudo: aprenda gramática, conheça as regras para poder subvertê-las, não existe nada parecido com uma "musa", o melhor caminho é o mais simples, leia muito e escreva muito, corte palavras inúteis. Óbvio, pelo menos para quem escreve como jornalista. Difícil, para a maioria das pessoas que quer escrever ficção. Duas "regras" de King nunca me abandonaram: trate os advérbios como seres de outro planeta (a comparação é minha) e kill your darlings (fui até procurar a frase original: "kill your darlings, kill your darlings, even when it breaks your egocentric little scribbler's heart, kill your darlings". Quem disse que escrever é cortar estava certíssimo.

A louca da casa

A louca da casa
Rosa Montero (Ediouro, 2004)

Demorei um bom tempo pra ler A louca da casa, mesmo depois de ter visto Rosa Montero falar na Flip de 2004. E quando finalmente abri o livro, a primeira frase me ganhou de cara: "Estou acostumada a organizar as lembranças da minha vida em torno de um rol de namorados e livros." Eu também. E quem me dera, um dia, escrever algo tão divertido e ao mesmo tempo tão capaz de provocar pensamentos sobre o fazer literário, sobre as bênçãos e armadilhas da imaginação. A louca da casa é um misto de lembranças autobiográficas, reflexão literária e ficção, com Rosa narrando em primeira pessoa. (Antes da leitura começar, eu já sabia que um dos personagens era completamente fictício - li ou ouvi isso em algum lugar, talvez até da própria autora em Parati. E esse foi um dos poucos casos em que começar a narrativa já sabendo de um de seus "segredos" não tirou o meu prazer da leitura.)

Peguei o livro da estante ao começar a escrever este post. Está todo anotado: "casco da tartaruga", "eu! até quando?", "mas às vezes não há respostas possíveis" são algumas das coisas que escrevi nas margens de quase toda página. Há dezenas de frases grifadas e outras circuladas, pra mostrar a importância maior: "A gente sempre escreve contra a morte", "imaginações monstruosas", "(como dizia Picasso, que a inspiração te pegue trabalhando)". Dois anos desde a leitura e eu ainda sei direitinho porque escrevi cada comentário, porque grifei cada frase. As anotações ainda fazem sentido - essa pergunta parece recorrente: até quando? - mas temo que um dia eu deixe de me lembrar dos motivos que me levaram a cada questionamento. Nem tanto dos práticos, dos profissionais, mas dos pessoais, envolvidos naquela época por um relacionamento intelectual que se foi para sempre.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

O clube Dante

O clube Dante
Matthew Pearl (Francis, 2005)

A capa do livro é horrível e a primeira edição está cheia, repleta de erros, tanto de digitação quanto de informações (o nome de uma casa ora aparece de um jeito, ora de outro, e a certa altura do texto uma "palavra" tão sem sentido como skdgjietuhdhgue aparece no meio de uma frase). Mas a história criada pelo iniciante Matthew Pearl é muito bacana. Gira em torno de quatro personagens reais, nos Estados Unidos de 1865: os poetas Henry Wadsworth Longfellow e James Russel Lowell, o médico Oliver Wendell Holmes e o editor J.T. Fields. Juntos, os quatro estão trabalhando na primeira tradução americana de A Divina Comédia, de Dante Alighieri, quando uma série de assassinatos começa a acontecer em Boston e Cambridge, onde fica a universidade Harvard. Surpresa: os crimes são cometidos a partir das punições descritas por Dante em seu Inferno.

Os quatro, então, passam a tentar solucionar os crimes, e a certa altura viram eles próprios os alvos do assassino. Tirando a existência real dos personagens e a tradução que Longfellow efetivamente fez do poema italiano, tudo mais é ficção, e das boas. Meu personagem favorito é o simpático dr. Holmes - foi ele que inspirou Conan Doyle a batizar Sherlock Holmes. Além disso, descobri pelo livro que o médico inventou a palavra anestesia - e eu adoro gente que inventa palavras!

terça-feira, 23 de outubro de 2007

O pequeno Nicolau

O pequeno Nicolau
Sempé e Goscinny (Martins Fontes, 1998)

Quando li O pequeno Nicolau pela primeira vez (já reli várias, e li também outros livros dessa série infantil), eu não conseguia parar de rir. Pra começar, foi escrito por René Goscinny, o mesmo roteirista dos quadrinhos de Asterix. Depois, Luis Lorenzo Rivera fez um belíssimo trabalho de tradução. Dá gosto ler as aventuras do moleque endiabrado que narra diversas historietas em primeira pessoa, sob um ponto de vista legitimamente inocente e ingênuo. Goscinny explora muito bem cada detalhe da infância de Nicolau, um garotinho francês de uns 6 ou 7 anos, na França da década de 1950. E, mesmo com essa idade, a história não ficou datada - talvez, aliás, faça rir ainda mais por causa da distância.

Adoro a maneira como Nicolau descreve seus colegas de escola: Godofredo, que tem um pai rico, Eudes, um fortão que bate em todo mundo, Clotário, o burrão da classe, Alceu, o comilão, e Agnaldo, o impagável queridinho da professora, em quem ninguém pode bater porque ele usa óculos, e que faz chilique toda vez que leva bronca. E adoro a maneira como Nicolau, em quase toda historinha, descreve de novo seus colegas de escola, numa repetição engraçada e típica da infância. Este primeiro volume da série tem dezenove histórias - minhas preferidas, se é que dá pra escolher apenas algumas, são O futebol, Djodjo, O lindo buquê e Fui visitar o Agnaldo. Esses personagens moram num lugar especial em minha cabeça - e ainda ganharam, no papel, o traço preciso de Jean-Jacques Sempé, que ilustrou primorosamente as histórias.

domingo, 21 de outubro de 2007

Reparação

Reparação
Ian McEwan (Companhia das Letras, 2002)

Eu não tenho dúvida em afirmar que este é um dos livros mais belos, e mais tristes, que já li. Nunca antes tinha lido McEwan, e o que li depois (Sábado, Amsterdam, Na praia) só confirmou a certeza de que ele é um dos melhores escritores contemporâneos vivos. (Tive a sorte de vê-lo falar, e ler um trecho do então inédito Sábado, na Flip de 2004, em Parati.) Tratar da história é quase inútil, porque um simples resumo da trama não chega perto da grandeza da narrativa e nem dá mostras da sensibilidade de McEwan. Mesmo assim: num dia de verão, em 1935, a adolescente Briony Tallis vê uma cena que, mal interpretada, trará conseqüências para o resto não só de sua vida como também para as vidas de sua irmã, Cecilia, e do jovem Robbie Turner. Falar mais do que isso não leva a nada. Melhor chamar a atenção para a descrição magistral que McEwan faz das enxaquecas da senhora Tallis, ou dos horrores da guerra em que Robbie Turner vai lutar. Reparação não é um livro fácil, no sentido de que não poupa o sentimento do leitor em nenhum instante; é daquele tipo de livro que causa uma permanente sensação de desconforto.

Apenas dois comentários: adoro Cecilia Tallis, uma personagem que gostaria de ter construído, e adoro o título original em inglês, Atonement - algo como "expiação", em português.

Quando Nietzsche chorou

Quando Nietzsche chorou
Irving D. Yalom (Ediouro, 2004)

Dois amigos de quem eu gosto muito, e cujo gosto literário eu respeito, falaram com entusiasmo deste livro desde o seu lançamento. De tão apaixonado, um deles até me mandou o livro de presente. Mas depois de duas tentativas que não foram para a frente, só fui ler o texto três anos depois. Não posso dizer que não gostei. Mas também não posso dizer que gostei. É melhor do que eu imaginava - o preconceito dos mais vendidos invariavelmente me leva a duvidar da qualidade literária ou pré-classificar alguns títulos como auto-ajuda - e, como mínima conseqüência benéfica, fez com que eu finalmente começasse a ler a biografia de Freud.

O problema é que quem já traz alguns anos de terapia na vida não se deixa impressionar de maneira tão fácil pelo tratamento imaginário que Josef Breuer, mentor de Freud e pioneiro da psicanálise, propõe, no livro, ao filósofo Friedrich Nietzsche. Nem pelo modo como o tratamento se inverte e, em lugar de Nietzsche, Breuer é que acaba sendo analisado. Nesse ponto, não há como evitar a lembrança da auto-ajuda: o Breuer humilde e estupetafo, quase atônito, disposto a reconquistar seu casamento depois de uma paixonite por Anna O., poderia estar em qualquer fábula que tivesse como moral o lema "a felicidade está onde você a põe".

De qualquer modo, a história serviu para aumentar minha curiosidade sobre as origens da psicanálise. Todos os personagens - Breuer, Nietzsche, Freud, Lou Salomé, Anna O. - existiram de verdade. Mas nem todos se cruzaram como propõe o livro; não se tem notícia de que Breuer tenha alguma vez conhecido Nietzsche. Esse, aliás, é um fato que deveria ter sido esclarecido logo no começo do livro, e não no final. Acho lícito que o autor abra o jogo de cara, para seus leitores, sobre onde começa a realidade e termina a ficção.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

O encontro marcado

O encontro marcado
Fernando Sabino (Record, 2006)

Livro de referência na obra de Fernando Sabino (1923-2004), O encontro marcado, lançado em 1956, é considerado um "típico romance de geração". A mim não comoveu tanto, talvez porque eu o tenha lido na época errada, já adulta - meu irmão, que leu na adolescência, identificou-se plenamente com as agruras do jovem Eduardo Marciano, personagem principal e alter-ego do escritor. Mas mesmo dando um desconto à falta de timing, achei o livro muito datado. A realidade (e, conseqüentemente, as dúvidas) de Marciano pararam na Belo Horizonte provinciana da década de 50. Dá, sim, pra imaginar o efeito que as questões existenciais e afetivas do protagonista tenham causado à moral de então. Hoje, porém, permanecem apenas como o retrato de uma sociedade e de uma mentalidade que só existe nos filmes de época.

Para mim, a parte divertida do livro foi tentar identificar, no quarteto de personagens centrais, quem era quem - é sabido que Fernando Sabino criou-os inspirado na amizade existente entre ele, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino ("os quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse", segundo Otto), mineiros que depois se desgarraram para o Rio. Ao menos factualmente, Sabino aparece por inteiro na pele de Marciano: assim como o personagem, também foi nadador, começou a escrever ainda na adolescência e casou-se com a filha de um político. Resta saber se a angústia de Marciano também marcou a vida de seu autor.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Extremamente alto & incrivelmente perto

Extremamente alto & incrivelmente perto
Jonathan Safran Foer (Rocco, 2006)

Resolvi colocar a capa estrangeira do livro no post porque foi essa a versão que eu li, em paperback (mas também conheço gente que leu a tradução de Daniel Galera e gostou muito). Extremamente alto & incrivelmente perto faz parte de uma rara categoria de livros que consegue falar com delicadeza de um assunto pesado. Do tipo que, ao mesmo tempo, provoca um prazer imenso pela leitura e uma inveja imensa pela capacidade do autor em escrever tão bem, e com tanto sentimento. Ainda mais sobre um assunto difícil - a morte -, e muitas vezes sob o ponto de vista de um menino de 9 anos.

Oskar Schell perdeu o pai nos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, em Nova York, e agora mora só com a mãe num apartamento em Manhattan, na frente do prédio onde vive sua avó. É um menino instigante: em seu cartão de visitas (sim, aos 9 anos ele tem um cartão de visitas!) ele diz que é inventor, entomologista amador, francófilo, escritor de cartas, percussionista, romântico, explorador, joalheiro, detetive, vegetariano e colecionador de borboletas. Certo dia Oskar descobre, no antigo armário do pai, uma chave misteriosa. E decide que, mesmo tendo de percorrer a cidade inteira, precisa encontrar o fecho certo para a chave. A empreitada do garoto é narrada em meio a cartas escritas há muito tempo por um velho que saiu de casa - e a confluência entre as duas histórias, ainda que óbvia, não deixa de interessar. A romaria de Oskar também pode ser muito divertida, como nos trechos em que ele escreve para o ídolo Stephen Hawking. Mas é a tristeza que perpassa todo o livro - até o final, acompanhado de uma belíssima seqüência de fotos que reforça a melancolia.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

A mulher que não prestava

A mulher que não prestava
Tati Bernardi (Panda Books, 2006)

Eu tenho a sorte de conhecer a Tati Bernardi - e de, depois de uma impressão inicial esquisita, poder admitir que eu estava errada: essa garota é um barato e sua conversa só perde mesmo para os textos que ela escreve. Mulher nenhuma consegue passar pelas páginas desse livro sem se identificar com a maioria das crônicas. A mulher-personagem da Tati somos todas nós que já levamos um pé na bunda, que temos complexo de inferioridade, que encanamos com a celulite e que invariavelmente escolhemos o cara errado.

A Tati escreve uma espécie de Sex and the City tupiniquim sem os vestidos fashion e as sandálias Manolo Blahnik. Suas crônicas, ao contrário dos dramas de Carrie & Cia., não precisam das ruas de Manhattan para acontecer. O glamour, ao contrário, está sempre nos outros, e nunca na mulher desesperada, cansada e confusa que ocupa as páginas do livro. Dá gosto em concluir: com a Tati na parada, o mercado brasileiro de livros não precisa de Melancias, Sophies Kinsellas e nenhum outro título de chick lit importada. Temos a nossa, autêntica e original, porta-voz das neuroses femininas.

O código Da Vinci

O código Da Vinci
Dan Brown (Sextante, 2004)

Li O código Da Vinci em inglês, por indicação de um amigo dos Estados Unidos, antes que fosse lançado no Brasil e virasse a febre que virou. Adorei. É claro que a narrativa de Dan Brown não tem nada de especial, diria que nada de literário; parece um roteiro hollywoodiano (como de fato depois se tornou) com viés de romance. Também não é verossímil - a imediata suspeita que cai sobre Robert Langdon, o jeito como ele escapa do Louvre, as rocambolescas perseguições e fugas pelas ruas de Paris, nada disso pertence ao território do minimamente possível. Mas Dan Brown não virou best seller por acaso: ele conta uma história danada de boa. E, nesse ponto, a narrativa entrecortada até ajuda: cria um clima de suspense e provoca no leitor um desejo quase cruel de avançar logo as páginas para saber "o que vem depois".

A história já está mais do que manjada: durante uma estadia em Paris, o professor americano Robert Langdon se vê às voltas com um mistério milenar, um assassino meio maluco e a responsabilidade sobre um segredo que pode mudar os rumos do mundo. Ao lado da criptologista francesa Sophie Neveu e do historiador inglês Leigh Teabing, Langdon usa e abusa de seus conhecimentos de simbologia - e os três, juntos, chegam à solução de uma trama que, durante séculos, a Igreja Católica tentou esconder.

Só lendo O código Da Vinci para conseguir entender porque é tão assustadora (embora muito divertida) a polêmica que se criou a seu respeito. Fundamentalistas católicos, representantes da Opus Dei e milhões de fiéis no mundo inteiro manifestaram-se contra o livro, que vai de embate a alguns dos dogmas mais arraigados do cristianismo. É impressionante - daí, assustador - ver como, em pleno século 21, ainda tem gente que confunde ficção com realidade. Ao escritor deve ser garantida total liberdade de assuntos. Lê quem quer. Quem não quer ainda tem a chance de ganhar dinheiro às custas alheias, como fizeram dezenas de autores que, na cola do livro, lançaram obras de pretensas denúncias e esclarecimentos sobre um assunto que nunca deveria ter saído do âmbito ao qual pertence: a ficção.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Feliz ano novo

Feliz ano novo
Rubem Fonseca (Companhia das Letras, 1989)

De maneira geral, não me interesso muito por contos - mas abro uma exceção sempre que se trata de Rubem Fonseca, que considero muito melhor contista do que romancista (exceções: adoro Vastas emoções e pensamentos imperfeitos - só o nome já é lindo - e gosto muito de Bufo & Spallanzani). Feliz ano novo, lançado em 1975, é talvez seu maior clássico. Nele surgiram contos como o que dá título ao livro, um banho de crueza e violência ("brutalista", na definição de Alfredo Bosi para a obra de Fonseca), e o perturbador Passeio Noturno, mostra do que a neurose urbana pode fazer com qualquer cidadão.

Meus preferidos, entretanto, são outros dois: Corações solitários (tema para um outro post) e o genial Nau Catrineta, que vem como quem não quer nada e vai enredando o leitor numa trama macabra digna de Allan Poe. O conto começa num amanhecer, no dia em que José completa 21 anos. E desde o princípio é sombrio, enevoado, talvez pela descrição da mansão em que o garoto mora com as tias, talvez pelo medo de Ermê, a convidada do jantar de aniversário, e que teria na data participação maior do que podia imaginar. É conto pra reler sempre, prestando atenção nos detalhes: o frasco de cristal negro, os versos de Almeida Garret, a definição dos primogênitos da família, feita por tia Helena. Macabro, sim, talvez assustador - mérito de Rubem Fonseca, que em poucas páginas consegue deixar seu leitor incomodado e nada indiferente ao que acabou de ler.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Nem só de caviar vive o homem

Nem só de caviar vive o homem
Johannes Mario Simmel (Nova Fronteira, 2006)

Talvez esse tenha sido o livro responsável, ao mesmo tempo, por me fazer gostar de tramas rocambolescas, mezzo policiais, mezzo thriller, e me fazer gostar de cozinhar. Isso porque Thomas Lieven, de pacato banqueiro alemão em Londres, de repente vê-se transformado em agente secreto durante a Segunda Guerra Mundial - e suas aventuras, ora a favor dos alemães, ora dos franceses e até dos americanos, são contadas a partir das refeições que ele preparou e serviu, e que de alguma forma foram marcantes em sua trajetória.

Não sei que idade eu tinha quando li esse livro - certamente na adolescência, durante os anos 80. Mas me lembro até hoje do impacto que me causou ver receitas completas, com ingredientes e modo de preparo, no meio de um livro de ficção. Então isso era possível? Lembro também que o volume lá de casa era bem velho; literalmente, desfolhava. E fiquei muito feliz quando, ano passado, vi o livro relançado por uma coleção que comemorava os 40 anos da editora Nova Fronteira. Só quem já passou pela experiência de, de repente, sentir reviver na alma todo um período da vida só de olhar para a capa de um livro, pode entender o que eu senti. Comprei na hora, reli no começo desse ano. Por sorte (ou prática), ando escolada nesse negócio de releituras, e quando abri de novo a história de Thomas Lieven eu sabia que meu juízo seria muito diferente do juízo dos 13 ou 14 anos. O livro realmente não é muito bom: tem furos, força a barra em várias situações e, isso foi o que me deixou realmente indignada, as receitas não são bem escritas. Mas não importa. Nem só de caviar vive o homem vai viver pra sempre na minha memória afetiva como o livro que me ensinou a gostar de thrillers, e a gostar de cozinhar.

sábado, 13 de outubro de 2007

Uma vida

Uma vida
Plínio Doyle (Casa da Palavra, 1999)

Assim como Ex-Libris, tema do primeiro post do blog, este é o tipo do livro que a gente termina de ler e fica com gosto de quero mais - muito mais. Plínio Doyle, o "José Mindlin carioca", escreve sem nenhuma pretensão para falar de sua vida em meio aos livros: o começo na advocacia, a formação de sua biblioteca (hoje pertencente à Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio), as reuniões de sábado à tarde em sua casa, inauguradas por Carlos Drummond de Andrade em 1964 e mais tarde batizadas de Sabadoyle. É impossível ler o livro sem ficar com vontade de ter participado de pelo menos uma delas, só pra ouvir a conversa de gente como Drummond, Pedro Nava, Paulo Rónai, Antônio Houaiss, Raul Bopp, Afonso Arinos e tantos outros.

Mas não é a vida de Plínio Doyle (1906-2000) a melhor parte do livro. É a maneira apaixonada e, várias vezes, muito divertida, como ele conta histórias a respeito de sua biblioteca. Uma delas: na edição das Poesias Completas de Machado de Assis pela H. Garnier, em 1901, o escritor adverte que suprimira da obra um prefácio anterior. "Não deixo esse prefácio, porque a afeição do meu defunto amigo a tal extremo lhe cegara o juízo que não viria a ponto reproduzir aqui aquela saudação inicial." Pobre Machado; como conta Doyle, "aquele cegara ali em cima teve uma letra trocada pelo tipógrafo: o e por um a". A biblioteca da Casa de Rui Barbosa tem 3 exemplares do livro: um com o erro original, um outro corrigido à mão e uma edição correta.

Doyle transcreve, ainda, dedicatórias e trechos das atas das reuniões semanais em sua casa - o que nos leva a um outro livro, igualmente delicioso, que pode ser lido em complemento a esse: O Sabadoyle, de Homero Senna (Casa da Palavra, 2000). Pena que Plínio Doyle não tenha escrito mais. E pena que o volume O natal no Sabadoyle, editado em 1994 pela Massao Ohno, não esteja mais em catálogo. Bem poderia alguém se animar a reeditá-lo, e a editar também uma coleção de todas as atas do Sabadoyle.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Minhas receitas da Provence

Minhas receitas da Provence
Patricia Wells (Ediouro, 1998)

Tem gente que não acredita (ou acha que é doideira), mas eu leio livros de receita como quem lê literatura - de onde eu sei, de cara, se uma receita faz sentido ou não. De uns tempos pra cá, cada vez mais chefs, principalmente os famosinhos, lançam seus livros de receita caríssimos, com fotos de dar água na boca, mas muitas vezes com ingredientes incompletos ou modos de preparo que só sendo adivinho pra entender como funciona. Não é o caso de Patricia Wells, minha escritora "culinária" favorita. Patricia é americana, mas ama a França e principalmente a região da Provença (as fotos deste seu livro não são lá essas coisas, mas boas o suficiente pra fazer a gente invejar a casa que ela comprou com o marido na pequena Vaison-la-Romaine), e são os sabores locais que inspiram receitas como o queijo de cabra gratinado à Anne (sua vizinha na Provença), o clafoutis de tomate e o pato com mel e limão (sua versão de um prato criado pelo chef Fredy Girardet).

O mais bacana é que, antes de cada receita, Patricia conta uma historinha sobre quem deu a dica pra que o prato saísse daquele jeito, fala das criações de seu açougueiro provençal, apresenta a moça que comanda a banca de queijos na feira local e trata de uma série de outros personagens em narrativas curtas e inspiradoras. Meu livro tem manchas de azeite e tomates, algumas anotações e vários post-its que marcam as receitas favoritas - ou outras que quero logo experimentar. Também de Patricia, são fundamentais Cozinha de Bistrô (o espaguete com limão, azeitonas e tomilho que tanto agrada meus amigos saiu de suas páginas) e The Provence Cookbook (ainda sem edição em português).

O ladrão no armário

O ladrão no armário
Lawrence Block (Companhia das Letras, 2007)

A diferença deste livro para outras ficções policiais começa na narrativa: a história é contada pelo próprio ladrão, e não pelo investigador ou por um narrador onisciente que, invariavelmente, puxaria a brasa para a sardinha da lei. E Bernard Rhodenbarr, o ladrão, de cara conquista o leitor. Sua maneira de viver não ganha, em nenhum momento, falsas justificativas: Bernie admite que rouba porque gosta, tanto da adrenalina quanto do resultado financeiro. Só não imagina que outras pessoas, como seu dentista, conheçam sua verdadeira "profissão" - pior, e que encomendem a ele um roubo como vingança contra a ex-mulher. De olho nas jóias da perua, Bernie invade seu apartamento e fica preso no armário quando ela volta da rua mais cedo do que ele esperava. Azar: quando ele finalmente consegue sair, encontra a mulher mortinha da silva no chão. E torna-se o principal suspeito do crime.

A história é bacana e Bernie é irresistível - nenhum leitor em sã consciência questiona sua conduta moral. Mas não há como engolir a solução do crime, muito fácil e conveniente. Leitores de policiais e/ou livros de mistério sabem que o mestre (Christie, Stout) nunca dá todas as pistas durante a trama. É impossível querer rivalizar com Wolfe ou Poirot. Mas Lawrence Block, pelo menos neste livro, tira a solução da cartola, e aí fica improvável demais.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Reinações de Narizinho

Reinações de Narizinho
Monteiro Lobato

Lembro de ter 6 anos de idade e olhar ansiosa a estante lá de casa, querendo aprender a ler direito para mergulhar naquela coleção de capa verde cheia de desenhos. Reinações de Narizinho foi meu primeiro livro sério (sério, sim; Lobato é seriíssimo, mesmo em seus clássicos infantis). Minha vida teria sido muito diferente se eu nunca tivesse aberto esse livro: considero que foi ele o responsável por minha paixão pela leitura - e pela graça da imaginação. Eu lia as aventuras do Sítio e sonhava com uma jabuticabeira só pra mim, com uma boneca com quem pudesse trocar idéias, com a visita de personagens dos contos de fadas, com um noivo encantador como o Príncipe Escamado.

Durante uma entrevista, em 1994, a escritora Ruth Rocha me disse que crianças modernas não entendem mais Lobato, mesmo lendo seus livros aos 12, 13 anos. Acho uma pena. Que infância triste deve ter quem não conhece Narizinho, Pedrinho, dona Benta, tia Nastácia, a Emília e o Visconde! Como será que é crescer sem ter vontade de provar os bolinhos da tia Nastácia? Sem torcer para que ela não cozinhe o Príncipe e o Marquês? A coleção infantil de Lobato fica cravada no fundo da nossa alma literária e faz parte do nosso repertório de memórias mais longínquas. É, ainda hoje, uma das maiores referências da cultura brasileira. E, principalmente, faz a imaginação voar.

Outros favoritos: Os Doze Trabalhos de Hércules e O Minotauro (de onde o gosto pela mitologia), Histórias de tia Nastácia (e que delícia, depois de adulta, reencontrar várias narrativas nas Fábulas Italianas do Calvino), Emília no País da Gramática e Aritmética da Emília (eu adorava o desenho das pessoas-palavras), A chave do tamanho (medo!).

(O livro que ilustra este post não é o mesmo que li aos 6 anos. O meu faz parte de uma coleção completa das obras infantis de Lobato, publicada na década de 1940 em 17 volumes pela Companhia Editora Nacional.)

Budapeste

Chico Buarque (Companhia das Letras, 2003)

Li Budapeste durante um vôo de Montevidéu a São Paulo, com escala em Buenos Aires, numa solitária e gripada noite de domingo. Por gostar tanto do Chico cantor-compositor, nunca tive coragem de ler um de seus livros anteriores - as referências não eram nada animadoras. Mas nessa noite fria, em junho de 2004, eu tinha um motivo pra encarar o mais recente rebento buarquiano: Chico participaria da Flip, em julho, ao lado do meu ídolo Paul Auster. Nada mais justo que ler o livro para acompanhar a conversa dos dois (Noite do Oráculo, o sensacional livro de Auster lançado na mesma época, fica para outro post).

E eu me surpreendi. Budapeste é bom. Tem alguns senões - fiquei muito incomodada com a estrutura repetitiva, Hungria-Kriska-Rio-Vanda-Hungria-Kriska, etc -, mas superou em muito a minha expectativa, a idéia de que ia encontrar um livro hermético e tentativamente poético. Ao contrário, é leve e muito divertido. Dá até pra imaginar um sorrisinho de Chico Buarque elaborando as frases frente ao computador, divertindo-se na arte de escrever. Além dele, outro artista merece crédito: Raul Loureiro, autor da deliciosa capa (um trecho do livro na frente, o mesmo trecho em "linguagem de espelho" no verso) e do primoroso projeto gráfico.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

O homem do terno marrom

O homem do terno marrom
Agatha Christie (Record, 1997)

Admito incondicionalmente minha paixão pelos livros de Agatha Christie (de preferência, na versão original em inglês; as edições publicadas pela Nova Fronteira na década de 80, quando tomei gosto pelos livros, tinham traduções pavorosas). Com exceção de A ratoeira, uma peça de teatro, acho que já li todos. E O Homem do Terno Marrom continua sendo um dos meus preferidos. Por causa dele, sonho em conhecer a África do Sul - viajar de trem pelo país, comprar girafas de madeira feitas pelos nativos, ver a Table Mountain no horizonte e, como a protagonista Anne Beddingfield, encontrar o amor nos braços de um homem calado e misterioso.

Trata-se de um road book que começa em Londres, quando Anne perde o pai e, por acaso, vê-se envolvida em dois assassinatos. Sem nada que a prenda na Inglaterra e decidida a encontrar o tal Homem do Terno Marrom, o suspeito dos crimes, a moça embarca rumo à África num navio onde viajam os principais personagens da história: uma dama da sociedade, um homem riquíssimo e seu secretário, um padre, um coronel. Do navio, a trama passa para um trem que percorre a África do Sul enquanto Anne percebe que virou alvo dos criminosos. Adoro reler a cena em que Harry socorre Anne, depois de um atentado no meio da selva: faz parte do espírito romântico adolescente que persiste em mim até hoje.

sábado, 6 de outubro de 2007

Mongólia e Nove Noites

Mongólia
Bernardo Carvalho (Companhia das Letras, 2003)

Nove Noites
Bernardo Carvalho (Companhia das Letras, 2002)

Decidi escrever sobre Mongólia e Nove Noites ao mesmo tempo não só porque são livros do mesmo autor e porque gostei muito de ambos, mas porque, no fundo, os dois são o mesmo livro. Ok: a história de um se passa entre os índios da Amazônia; a do outro, na aridez da Mongólia. Ambos, porém, tratam do mesmo tema: alguém desaparece, há vestígios do sumido, outro alguém segue os passos do desaparecido, desvenda os caminhos que ele percorreu e, no fim, um segredo é revelado ao leitor.

Tendo lido esses e mais dois livros de Bernardo Carvalho (Onze, bem fraquinho, e o interessante As iniciais), acredito poder afirmar que trata-se de um dos melhores escritores em atividade no Brasil. Gosto do domínio que ele tem sobre a palavra nos romances que escreveu (em compensação, sua veia cronística é muito chata). E acho uma pena que seus dois melhores livros sejam, na verdade, um só. Creio que gostei de Mongólia porque foi o primeiro que li, porque trata de uma cultura e uma realidade tão diferentes e porque, afinal, a história faz a gente querer saber como tudo vai terminar. Bernardo Carvalho escreveu com propriedade: viajou pelo país e pôde ver os edifícios opressivos, os templos e os incríveis grupos nômades que circulam pelo território com suas casas portáteis. Mas, no embate entre os dois livros-irmãos, o mais velho sai ganhando. A estrutura e o desfecho de Nove Noites não surpreendem quem já tenha lido Mongólia, mas as cartas do protagonista, seu dilema pessoal, o cotidiano e os rituais indígenas são capazes de envolver o leitor numa prosa irresistível como só um bom escritor consegue produzir.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

A menina que roubava livros

A menina que roubava livros
Markus Zusak (Intrínseca, 2007)

Confissão nº 1: comprei esse livro assim que ele foi lançado porque achei a capa muito, muito bonita.

Confissão nº 2: tivesse esperado mais tempo para comprar e ler o livro, eu o teria deixado de lado por puro preconceito. Tamanho sucesso e conseqüente exposição me levariam a crer que esse não passava de outro best seller de gosto duvidoso, como as pipas e os livreiros e Cabul.

A história é narrada pela Morte, que conta de seus três encontros com uma menina chamada Liesel, a garota do título. Liesel é alemã na pior época da História: logo antes e durante a Segunda Guerra Mundial. Órfã dos pais por causas políticas, Liesel vai parar na casa de uma família alemã nada nazista. Logo conquista os pais adotivos. E faz amizade com o garoto vizinho. E então surge um Judeu. E o Judeu desenha e escreve uma história para Liesel. Contar mais seria estragar o lirismo, a tristeza e a sensibilidade da história de Zusak, escritor australiano de pais alemães que viveram a guerra . Zusak esteve no Brasil para a Bienal do Rio de 2007. Numa entrevista a Edney Silvestre para a Globonews, contou que uma das histórias mais terríveis do livro - a do judeu e do pedaço de pão - foi presenciada por sua mãe na Alemanha. Mérito de Zusak: seu livro é, sim, bem triste. Mas nada deprimente.

Os Maias

Os Maias
Eça de Queiroz (Ateliê Editorial, 2001)

Ao lado de O Morro dos Ventos Uivantes, esse é um livro que me dá imenso prazer a cada leitura. A prosa envolvente de Eça, seu humor peculiar e inteligente, a triste história de amor de Carlos Eduardo e Maria Eduarda e personagens impagáveis como Dâmaso e João da Ega, o meu preferido, sempre dão oportunidade para novas descobertas. Foi só na terceira leitura que fiquei apaixonada por Carlos da Maia. Em outra delas, fui tocada pela fragilidade caprichosa de Maria Eduarda. Em comum, sempre, só mesmo a torcida para que Carlos e Eduarda, por um passe de mágica literário, pudessem dessa vez conseguir ficar juntos.

Minha paixão pelo livro é tão grande que eu nem quis assistir à minissérie exibida pela Globo em 2001. Parecia um crime contaminar a imaginação com a estampa de atores conhecidos. Meu Carlos da Maia não é tão bonito quanto o Fábio Assunção, mas ainda assim envolvente. Minha Maria Eduarda é loiríssima e delicada, dona de um corpo quase diáfano. Dâmaso é um janota gordinho. Raquel, o Ega, o velho Afonso, a condessa Gouvarinho, todos moram na minha cabeça, e não na tela da TV.

Ah, e Sintra: até hoje tenho vontade de conhecer Sintra, em Portugal, apenas por causa do livro.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Deus - um delírio

Deus - um delírio
Richard Dawkins (Companhia das Letras, 2007)

Quando eu contei a um amigo que estava lendo - e adorando - o mais recente livro de Richard Dawkins publicado no Brasil, ele disse: "esse é o tipo do livro inútil. Nenhum ateu precisa dele para confirmar sua descrença e nenhum religioso vai ler". O livro não é inútil: tem, no mínimo, trechos muito divertidos. Mas meu amigo não deixa de ter razão ao notar que essa nova investida de Dawkins não vai convencer ninguém a mudar de time na esfera religiosa.

É capaz de os cristãos passarem diante do livro fazendo o sinal-da-cruz. Crentes, de qualquer tipo, não devem duvidar de que a obra é herética ou de que o pobre Dawkins está fadado a um longo confinamento no inferno: ele trata o criacionismo e toda a série de preceitos morais baseada na Bíblia como lenda, mentiras pré-fabricadas para atender ao poder religioso. Mas quem simpatiza com a idéia de que Deus não existe e que a única forma de religião possível é o darwinismo pode curtir as mais de 500 páginas dedicadas pelo biólogo britânico a provar que a noção de Deus é uma invenção humana e que nada no criacionismo faz sentido. Seu ataque ao conservadorismo americano, por exemplo, traz bons argumentos e informações. Mesmo assim, o livro deixa um gosto amargo no leitor. O que incomoda não é o excesso de panfletarismo ou virulência: é a impressão que o cientista passa de ter usado Deus - um delírio para desforrar-se de desafetos pessoais; não são poucos os parágrafos dedicados a ridicularizar os inimigos.

Ex-libris

Ex-libris
Anne Fadiman (Jorge Zahar, 2002)

Tem gente que não entende meu gosto por releituras. Acham que, porque leram uma vez, já conhecem "o fim da história" e por isso não faz sentido reler literatura. Não dá pra discutir - eu também não entendo por que tem gente que revê 1000 vezes o filme Duro de Matar.

Tem gente que não admite uma sujeirinha em seus livros. Que só falta pegá-los com luvas cirúrgicas, não usa a orelha, cobre com papel-manteiga pra evitar da capa amarelar. Eu USO meus livros. Grifo. Escrevo nas margens. Derramo lágrimas sobre a tinta, dobro a lombada pra ficar mais confortável de ler na cama, às vezes marco a página com a lapiseira que usei pra fazer anotações.

Por essas e outras (eu também adoro ganhar livros de presente! eu também adoro escrever e receber dedicatórias! eu também "reviso" cardápios e tudo quanto é texto que cai nas minhas mãos!), desde a primeira página eu me senti a alma gêmea de Anne Fadiman, editora e escritora americana que juntou suas "confissões de uma leitora comum" no pequeno e delicioso Ex-Libris. O primeiro texto trata do casamento de duas bibliotecas: a dela e a do marido. Outro fala de plágios (e de como a mãe dela, correspondente de guerra, foi plagiada por um escritor que virou best seller). Outro, de sebos (e dos 8,5 quilos de livros usados que ela ganhou certa vez do marido, como presente de aniversário). Mas Anne Fadiman não trata apenas de histórias familiares. Seus textos sobre livros e o prazer de ler acabam sendo uma fonte de referências para quem, como eu, esconde uma obsessão (uma estante excêntrica, diria ela): o amor por livros sobre livros. O único defeito de Ex-libris é o tamanho: 162 páginas que a gente lê de uma tacada. Ando pensando em começar uma campanha para fazer Anne Fadiman escrever mais.