A autobiografia de Alice B. ToklasGertrude Stein (CosacNaify, 2009)
Aos trancos - não porque não esteja gostando, mas porque o tempo parece ter se esmerado em pregar suas peças em mim -, estou terminando de ler
Paris é uma festa, de Hemingway, numa versão em inglês, para o
Kindle, anterior àquela que um de seus netos desfigurou para tentar melhorar a imagem da avó. E me diverti muito, logo no início, quando Hemingway fala de sua amizade com Gertrude Stein, bem na época retratada pela escritora nesse
A autobiografia de Alice B. Toklas. Sim, trata-se de uma "autobiografia", mas escrita por outra pessoa - afinal, a vida de uma é a vida da outra.
Alice viveu com Gertrude por 38 anos, dividindo os papéis de amante, secretária, governanta e eventual cozinheira. Segundo
MFK Fisher, no prefácio de
O livro de cozinha de Alice B. Toklas, foi uma mulher baixinha, muito feia, de olhos vivos e gosto por chapéu espetaculares. Era dela a tarefa, como conta Gertrude e corrobora Hemingway (sem, no entanto, citar o nome de Alice), de conversar com as mulheres dos amigos da casa, de passar a limpo e de fazer a revisão dos textos da companheira.
Eu já tinha lido
O livro de cozinha..., escrito pela própria Alice depois da morte de Gertrude Stein. É meio sisudo e, às vezes, até baixo-astral, embora traga histórias inspiradoras - muito diferente da bem-humorada autobiografia que, mesmo sem ter saído da pena da biografada, consegue mostrar de um jeito bem mais amigável quem foi, afinal, essa americana que largou tudo em seu país para viver, na França, com a escritora (já, então, um tanto famosa - se não pelos livros, pela fabulosa coleção de amigos: Picasso, Matisse, Apollinaire, Sherwood Anderson, vários outros).
É também através das palavras de Alice que Gertrude Stein fala muito de si mesma, quase sempre sem nenhuma modéstia (
"Posso dizer que só três vezes na vida encontrei gênios [...] Gertrude Stein, Pablo Picasso e Alfred Whitehead"), das frustrações e expectativas em relação à sua obra e de seu método de trabalho. Picasso, suas mulheres e seus quadros, ocupam boa parte das memórias, assim como a convivência com Matisse, desafeto da cozinheira Hélène:
"(...) Monsieur Matisse vai ficar para jantar hoje, ela dizia, nesse caso não vou fazer omelete, mas ovos fritos. Gasta o mesmo número de ovos e a mesma quantidade de manteiga, mas demonstra menos respeito e ele vai entender."Dá vontade de ler outra vez, assim que eu acabar o Hemingway, e continuar lendo outros escritos sobre essa época em Paris. O livro de Sylvia Beach sobre a Shakespeare and Company.
Paris era ontem, de Janet Flanner, a correspondente da revista
The New Yorker, na França, quando Gertrude, Alice, Pablo, Ernest e tantos outros viviam lá. É dela, aliás, a frase "qualquer autobiografia de uma será, necessariamente, uma biografia da outra", que usei adaptada ali em cima, e que aparece no ótimo posfácio de Silviano Santiago - ilustrado por uma foto das duas, Gertrude Stein levando um cachorro na coleira e Alice B. Toklas a seu lado, baixinha, muito feia, com um chapéu espetacular.