Na madrugada de 5 de agosto de 1962, o sargento Jack
Clemmons chegou ao número 12305 da Fifth Helena Drive, em Los Angeles, para
atender a um caso de aparente suicídio. Eunice Murray, a governanta, e Ralph
Greenson, o psiquiatra da vítima, haviam arrombado a porta do quarto principal
e encontrado a dona da casa sem vida, ao lado de um frasco vazio de calmantes e
outros catorze vidros de remédios variados. Cobriram o corpo com um lençol.
Marilyn Monroe, estrela de 29 filmes de cinema, 36 anos completados dois meses
antes e uma das mulheres mais desejadas do mundo, acabara de morrer.
Não há nada como a morte prematura para transformar
alguém em mito. Foi assim com o ator James Dean (24 anos, em 1955), com a
Princesa Diana (36, em 1997), com os músicos Jimi Hendrix e Janis Joplin (os
dois aos 27, em 1970). Marilyn era linda, rica e, embora se confundisse com a
loira apenas burra e sexy que se especializou em retratar na tela, talentosa. É
lícito supor que, caso não tivesse ingerido a alta dose de sedativos que levou
seu coração a parar, poderia ter feito carreira longa em Hollywood. Teria,
hoje, 86 anos – a mesma idade da Rainha Elizabeth II e do cantor Tony Bennett,
que não dão mostras de querer se aposentar tão cedo. Talvez chegasse ao status
de Elizabeth Taylor (1932-2011), dona de dois Oscars de melhor atriz, que atuou
até 2001, aos 69 anos. Ou trabalhasse até os 78, como Jane Russell (1921-2011),
sua colega de elenco em Os homens
preferem as loiras (1953).
Mas Marilyn morreu antes de ter tempo para se aposentar
e, mais importante, antes que os paparazzi pudessem registrá-la velha e doente.
Das milhares de imagens feitas a partir de 1946, quando a atriz participou de
seu primeiro teste em Hollywood, não há uma só em que pareça desconfortável
diante das câmeras – incluindo os nus, como o calendário de 1949, com ela ainda
ruiva e de cabelos longos contra um fundo de veludo vermelho, e a sessão para
Bert Stein, seis semanas antes da overdose, atrás de tecidos diáfanos que mais
revelam do que escondem seu corpo. Ao contrário: ela sabia que mantinha com as
lentes uma relação vantajosa. Estabeleceu vínculos fortes com fotógrafos como
Eve Arnold, responsável por retratá-la nos bastidores de Os desajustados (1961), entre outras ocasiões, e Milton Greene, seu
sócio na Marilyn Monroe Productions.
Consta que mais de 200 fotógrafos estavam presentes
quando o diretor Billy Wilder tentou gravar, nas ruas de Nova York, a famosa
cena de O pecado mora ao lado (1955) em
que a personagem de Marilyn refresca-se do calor com o vento liberado pela
tubulação do metrô. Por causa do barulho excessivo da plateia, a equipe teve de
refazer tudo em estúdio. E a tomada que acabou entrando no corte final mostra
bem menos da saia branca levantada e das pernas da atriz do que foi registrado
pelas câmeras em Manhattan, numa imagem que ganhou o mundo como uma das mais
emblemáticas da estrela.
Meio ingênua, meio maliciosa e dona de um sex appeal
definitivo, a garota de nome desconhecido criada pelos roteiristas Wilder e
George Axelrod passa o filme todo provocando pensamentos libidinosos no marido
alheio, vivido por Tom Ewell. Da mesma forma que a Lorelei Lee de Os homens preferem as loiras (1953), a
Pola Debevoise de Como agarrar um
milionário (1953) e a Sugar Cane de Quanto
mais quente melhor (1959), a modelo tontinha de O pecado mora ao lado sintetiza o tipo de mulher que a atriz mais
interpretou, e que o público sempre teimou em misturar com a ideia que fazia
dela na vida real – como se a Marilyn pessoa física fosse somente uma loira
burra, ingênua e interesseira, que usava a beleza e o sexo para se dar bem.
Não que a atriz impedisse as pessoas de ter esse tipo de
pensamento. Em My story, livro de
memórias ditado para o roteirista Ben Hecht em 1954 e lançado apenas vinte anos
depois, ela conta que descobriu seu poder de sedução aos 12 anos, quando, a
caminho da escola, rasgou por acidente a blusa que usava e pegou emprestado, da
irmã adotiva, um suéter menor que seu tamanho. “Eu já sabia há algum tempo que
tinha seios bem-formados e não ligava para isso”, diz ela, no livro. “Mas os
garotos da classe de matemática ficaram bem mais impressionados.” Ainda que sem
intenções sexuais, tirar proveito do corpo foi a maneira que a pequena Marilyn,
ainda chamada pelo nome de batismo, Norma Jeane, encontrou para ser aceita nos
orfanatos e nas famílias adotivas que frequentou até o primeiro casamento, com
Jim Dougherty, em 1942.
A atriz afirma, no livro, que nunca se prostituiu para
ganhar dinheiro ou obter vantagens, nem mesmo nos tempos das vacas magérrimas
de seu começo em Hollywood, já separada de Dougherty. Admite, no entanto, que
aceitava almoços, jantares e alguns presentinhos dados por seus admiradores –
da mesma forma que Holly Golightly, a garota de vida duvidosa encenada por
Audrey Hepburn em Bonequinha de luxo
(1961), papel que o autor da história, Truman Capote, queria porque queria que
fosse da loira (acabou vencido pela vontade do estúdio Paramount).
Mas assim como algumas de suas principais personagens,
que mostram grande esperteza ao conseguir fisgar um marido rico no fim dos
filmes, Marilyn não era burra – ou, pelo menos, dava um duro danado para não
ser. Matriculou-se em aulas de arte e literatura na UCLA (University of
California at Los Angeles), estudou com Lee Strasberg pelo método de
Stanislavski no Actors Studio de Nova York e não perdia a chance de ser
fotografada com um livro nas mãos para mostrar o que estava lendo, de Hemingway
aos clássicos russos. Mesmo assim, não era poupada em piadas e comentários
sobre uma suposta lerdeza de pensamento. No musical para o cinema Pal Joey (1957), estrelado por Frank
Sinatra, a personagem Vera Simpson, vivida por Rita Hayworth, altera os versos
originais de uma música de Rodgers e Hart para zombar da inteligência da colega:
“ela não apenas atua, dizem que também consegue pensar”.
Golpe maior, para Marilyn, foi descobrir o que o
dramaturgo Arthur Miller, seu terceiro marido – o segundo casamento, com o
jogador de beisebol Joe DiMaggio, acabou pela incapacidade dele em lidar com a
fama dela – pensava de seu esforço para aprender. Numa temporada na Inglaterra,
durante as filmagens de O príncipe
encantado (1957), a atriz leu o diário deixado aberto por Miller e
descobriu que ele não só tinha dúvidas a respeito da união como sentia vergonha
dela diante dos amigos intelectuais. Durante o período em que ficaram juntos,
até o final de 1960, Marilyn teria tentado se matar pelo menos duas vezes.
Cinquenta anos depois de sua morte, porém, e apesar do
veredicto taxativo da polícia de Los Angeles, ninguém pode afirmar se ela
cometeu mesmo suicídio ou se a overdose de calmantes naquela noite de agosto
foi acidental. Não faltam teorias da conspiração para sugerir que ela tenha
sido assassinada a mando da Máfia ou do ex-amante e presidente dos Estados
Unidos, John Kennedy – para quem, em maio de 1962, num Madison Square Garden
lotado, ela havia cantado o Parabéns a
você mais famoso da História, usando um vestido que, de tão justo, precisou
ser costurado em seu corpo. Viciada em calmantes, dependente de psicanálise e
atormentada por uma sensação de desajuste que a perseguia desde a infância, quando
foi obrigada a passar períodos em orfanatos e lares adotivos enquanto a mãe
cumpria temporadas num sanatório para doentes mentais, a atriz tentava aliviar
a tristeza escrevendo desabafos e anotando pensamentos em cadernos e papéis de
carta dos hotéis onde se hospedava (a edição fac-similiar de boa parte desse
material foi publicada em 2011 pela editora Tordesilhas, no livro Fragmentos). Em 1958, durante o
casamento com Miller, começou a achar que estava envelhecendo.
Eu me vejo no
espelho agora, sobrancelhas franzidas – se eu me encostar perto verei – o que
não quero saber – tensão, tristeza, decepção, meus olhos azuis turvos,
bochechas rosadas com capilares que parecem rios nos mapas – cabelo caindo como
cobras. A boca me torna a mais triste, ao lado dos olhos mortos. Há uma linha
escura entre os lábios no contorno de várias ondas de brisa numa tempestade
turbulenta – ela diz não me beije, não me engane sou uma dançarina que não sabe
dançar.
A mulher mais desejada do mundo não era feliz.